14 de março de 2025

Especial 40 anos de democracia no Brasil

Ulisses Guimarães entre Tancredo e Sarney em ato de campanha (Foto: Arquivo/CB/DA Press)

O Correio Braziliense relembra, em uma série de reportagens a partir de hoje, a difícil retomada do Estado de Direito. E começa retornando às horas que antecederam a confirmação do vice-presidente eleito José Sarney à frente da nação, devido à impossibilidade de Tancredo Neves — que pelas 21h de 14 de março fora levado, às pressas, ao Hospital de Base, em Brasília, com fortes dores no abdômen e que resultariam numa cirurgia feita horas depois, a contragosto do próprio paciente por causa da circunstância política.

Recuperar esse e outros episódios, de quatro décadas atrás, tem uma razão que vai além da responsabilidade e preservar a memória e de relembrar a história: passadas quatro décadas, imaginava-se que as tentações autoritárias estavam sepultadas e que os militares satisfaziam-se com o papel que lhes é constitucionalmente determinado. Viu-se, recentemente, que isso não é verdade.

A noite de dúvidas que pôs fim à ditadura

Solenidade de Posse José Sarney como presidente em exercício (Foto: Arquivo/CB/DA Press)

Na manhã de 15 de março de 1985, a ditadura militar terminava de forma melancólica para que se desse início à insegura e receosa democracia da Nova República.

Sarney era da Arena (que tornara-se PDS), integrou a Frente Liberal e ingressou no PMDB para formar, com Tancredo, a chapa da Aliança Democrática, que venceria Paulo Maluf e Flávio Marcílio, no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. A cerimônia que deu posse, interinamente, ao vice-presidente teve início às 10h12 e foi rápida.

Um dia antes, na despedida do Senado, em 14 de março de 1985, Sarney manifestou a certeza de que seria "um vice-presidente fraco de um presidente forte" — como lembrou em depoimento ao Correio Braziliense, na edição de 23 de fevereiro de 2025. "Saio do Senado no alvorecer de um momento extraordinário de floração de grandes esperanças no país. Tenho a nítida visão histórica e política da missão que exercerei. Posso dizer ao Senado que exercerei a vice-presidência com absoluta doação, total sacrifício e uma visão maior das minhas responsabilidades de político, num momento de restauração do poder civil", prometeu, no discurso aos pares.

Tancredo passa mal. E quem assume?

Tancredo com seu neto Aécio, FHC e Sarney (Foto: Arquivo/CB/DA Press)

Tudo isso mudou por volta das 21h30 de 14 de março, quando Tancredo deu entrada no Hospital de Base. Não se tinha a clareza se era Sarney ou o presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, quem deveria estar na sessão conjunta do Congresso que, inicialmente, estava preparada para receber o presidente eleito. Até que fosse dirimida a dúvida sobre quem era o número dois da linha sucessória da República, foram horas de consultas e discussões.

Pelas 20h da véspera da posse, logo depois da missa solene celebrada no Santuário Dom Bosco, Tancredo teve um mal-estar no jantar, depois de chegar com a família à Granja do Riacho Fundo. Recolheu-se ao quarto e, mesmo com fortes dores, pediu ao então secretário particular, o hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), que lhe desse os atos da nomeação ministerial — que seriam entregues à Imprensa Nacional para publicação no Diário Oficial da União (DOU). O presidente eleito os leu e efetivou cada um dos nomes. Por volta das 21h, Tancredo foi removido emergencialmente.

Ao mesmo tempo, a cúpula do PMDB confraternizava-se em um jantar com o então primeiro-ministro Mário Soares, na Embaixada de Portugal, que viera para a posse de Tancredo. Foi o futuro ministro da Justiça, Fernando Lyra, quem recebeu o telefonema do também futuro colega de ministério Aluízio Alves, que assumiria a pasta da Administração, avisando-o de que Tancredo fora internado. E que a situação não era boa.

Tomaram todos o rumo do hospital. À frente do grupo, Ulysses, presidente da Câmara desde 28 de fevereiro. Sarney juntou-se à comitiva. A saúde do presidente eleito era um problema de grandes proporções, mas a consequência da internação não era de menor magnitude. Quem assume o comando da República se Tancredo lá não estiver?

Aqui, surge a dúvida se deveria ser Sarney ou se Ulysses ocuparia o cargo, provisoriamente, e convocaria eleições, sem que ele mesmo pudesse disputá-la. De acordo com estudiosos do período, o general Leônidas Pires Gonçalves — que se uniu ao grupo no hospital, saído às pressas de uma recepção em sua homenagem na Academia de Tênis —, futuro ministro do Exército, deu rumo ao debate: que seguissem a Constituição.

Ulysses conhecia a carta de 1967, mas foi o futuro ministro do Gabinete Civil, José Hugo Castello Branco, quem mostrou o livro com o texto constitucional. Pela interpretação que faziam dos artigos 76 e 77, da emenda constitucional de 1969, era Sarney que deveria estar na cerimônia das 10h.

A saída está na Constituição, mas não há convicção

Eleição de Tancredo e Sarney Congresso Nacional (Foto: Arquivo/CB/DA Press)

Porém, não havia total convicção de que a resposta era essa. Formaram-se, então, três grupos no Hospital de Base. O de Leônidas e Ulysses seguiu para a Granja do Ipê, onde residia o ainda ministro da Casa Civil, João Leitão de Abreu, que chancelou Sarney como substituto de Tancredo. O jurista Affonso Arinos de Mello Franco reforçou que não pairava dúvida sobre quem era o segundo da República.

"O artigo 77 diz: 'Substituirá o presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á no de vaga, o vice-presidente'. Quer dizer, temos que partir primeiro da consideração factual, e evidente, de que o vice-presidente da República não é vice-presidente do presidente. (...) O vice-presidente toma posse não como presidente, mas como vice-presidente em substituição ao presidente", disse Arinos à Rede Globo, em entrevista articulada pelo deputado Israel Pinheiro Filho (PMDB-MG), depois de deixarem o jantar na casa da empresária Vera Brandt, no Lago Sul. Dois outros juristas, Paulo Brossard e Miguel Reale, endossaram publicamente essa interpretação.

No apartamento do ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, na Asa Sul, travava-se a mesma discussão. Relato do ministro Sydney Sanches, outro dos 11 do STF, a Bernardo Braga Pasqualette, e publicado em Me Esqueçam — Figueiredo, a biografia de uma Presidência, mostra que situação não era tão cristalina assim. Para ele e o ministro Luiz Octavio Gallotti, Ulysses assumiria a Presidência interinamente.

"Mas não chegamos a definir posição a respeito. E a decisão da maioria foi sábia, jurídica e politicamente", relembrou. Ou seja, deu Sarney.

A dúvida era, sumariamente, a seguinte: como Tancredo estava eleito, mas não empossado, Sarney estava na mesma situação. Exercendo mandato, apenas Ulysses. Em entrevista a Ronaldo Costa Couto, cujo trecho foi publicado no livro de Pasqualette, o presidente João Figueiredo explica por que não passou a faixa presidencial e, também, por que não deveria ser Sarney a assumir o Executivo interinamente.

"Os generais vinham me propor, no caso da impossibilidade, passar o governo ao dr. Sarney. Eu digo: 'O dr. Sarney não pode'. 'Mas por que?' Eu disse: 'Dr. Leitão (de Abreu), o senhor é um jurista, eu não sou. Mas, infelizmente, sei ler português. E estou com a Constituição aqui em frente. E ela diz que no caso de impedimento do presidente eleito, tomará posse o presidente da Câmara. Durante 30 dias. Se passados 10 dias depois da posse dele, o presidente eleito não tiver condições, 30 dias após a saída dele haverá uma eleição. (...) Para mim, quem deveria assumir era o Ulysses", disse Figueiredo. Essa argumentação era compartilhada por próceres da ditadura que caía, como o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o chefe da Casa Militar, general Rubem Ludwig.

Tancredo adiou o mais que pôde a internação e a consequente cirurgia. Não era para menos: estava convicto de que, se não assumisse, haveria uma crise política. De acordo com o livro O Paciente — O caso Tancredo Neves, do médico e historiador Luís Mir, em um diálogo com o médico Renault Mattos Ribeiro, que o atendia, na manhã de 14 de março o presidente eleito deixou clara a preocupação, mas sem ser explícito nas palavras, de que poderia haver um retrocesso institucional.

"Não faço de maneira alguma (a operação). Já lhe disse que só depois da posse", disse Tancredo a Renault.

O médico, então, responde: "É como se nós estivéssemos ganhando de 1 x 0 e o outro time vai empatar. E com o empate, nós vamos perder o campeonato, presidente".

Tancredo insiste: "Mas você não vai permitir que o outro time empate. Você vai usar todos os seus recursos e não vai permitir que haja empate coisa nenhuma. Nós vamos ganhar"

A manobra para evitar que Sarney assuma

O senador José Sarney conversa com o senador Tancredo Neves após as eleições indiretas (Foto: Arquivo/CB/DA Press)

O jornalista José Augusto Ribeiro conta em Tancredo Neves — A Noite do Destino que Figueiredo, tão logo soube da internação do presidente eleito, sugeriu ao ministro do Exército, Walter Pires, que se movimentasse para Sarney não assumir. O general, porém, fora destituído, pois a dispensa dos ministros estava no DOU. Quem o avisou foi Leitão de Abreu, que usou de uma artimanha: disse que a exoneração foi publicada antecipadamente, por engano — como registra a jornalista Regina Echeverria em Sarney, a Biografia. Pires não mandava mais nada.

Na frenética madrugada de 15 de março, houve uma reunião entre o presidente do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), e Ulysses, com os líderes dos partidos nas Casas do Congresso. Diz a ata do encontro, catalogada nos anais do Senado, que "ouvidos todos os presentes, houve inteira concordância no sentido de que, mediante a apresentação de laudo médico que comprove a impossibilidade de o presidente eleito ser empossado nesta solenidade, a Mesa do Senado deverá dar posse ao vice-presidente eleito".

Às 10h12 de 15 de março, Sarney assumia. Nas horas de angústia que precederam a cerimônia, anotaria em seu diário: "Minha recusa era uma fuga. Eu tinha medo. Na minha cabeça estavam milhões de brasileiros olhando-me e apupando-me como o injusto beneficiário, que, por maquiavelismo, fizera tudo, rompera com o PDS, e agora, ajudado pelas forças do imprevisto, arrebatava a Tancredo a glória desse dia", revela Regina Echeverria em Sarney, a Biografia.

Do Congresso, seguiu para o Palácio do Planalto para dar posse ao ministério. Recebido por Leitão de Abreu, lê um texto de pouco mais de 1m30 da primeira à última palavra. "Eu estou com os olhos de ontem. E ainda prisioneiro de uma emoção que não se esgota. O Deus da minha fé, que me guardou a vida, quis que eu presidisse a esta solenidade. Ele não me teria trazido de tão longe, se não me desse, também, na sua bondade, as virtudes da paciência, do equilíbrio, da coragem, do idealismo, da firmeza e da visão maior das nossas responsabilidades perante esta Nação e sua História. Na forma da Constituição Federal, assumi a Presidência da República na impossibilidade de fazê-lo o senhor presidente Tancredo de Almeida Neves, a quem, tenho absoluta certeza, dentro de poucos dias entregarei o governo na forma da Constituição e das leis, no desejo e vontade do povo brasileiro. Os nossos compromissos, meus e dos senhores agora empossados, são os compromissos do nosso líder, do nosso comandante, do grande estadista Tancredo Neves, nome que constitui a bandeira de união do país. Exerceremos os nossos deveres, eu e os senhores, como escravos da Constituição, das leis, do povo e dos compromissos da Aliança Democrática, compromissos estes que, com determinação, jamais abandonaremos, das mudanças e das transformações. Desejo a todos os senhores ministros êxito em suas tarefas. Declaro empossado o ministério e encerrada esta solenidade", disse o agora presidente em exercício.

Segundo Fernando César Mesquita, ex-porta-voz da Presidência, "Sarney não queria ser presidente. Ficou muito chateado em assumir a vaga que era do Tancredo. Tomou posse com o governo todo formado. Até os cargos de terceiro escalão estavam ocupados, todos assinados. Sarney não tinha ninguém dele. As únicas pessoas dele no Palácio do Planalto eram eu, o Jorge Murad (secretário particular) e, depois, o (advogado, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras) Marcos Vilaça".

Figueiredo deveria passar-lhe a faixa presidencial. Não o fez porque entendia não ser Sarney quem deveria recebê-la. O general era conhecido pela irritabilidade, pelo descuido com as palavras, e também pela aversão à imprensa. Fumava entre dois e três maços, diariamente, de Parliament, cigarro então fabricado nos Estados Unidos, fator determinante para a morte na véspera do Natal de 1999. Em eventos públicos, escondia-se atrás de óculos escuros que, dizia-se, era para observar o cenário ao redor, hábito que cultivava desde os tempos em que fora diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), no governo de Ernesto Geisel. Além disso, sofria de lancinantes dores de coluna, o que o levou a submeter-se a "operações espirituais" realizadas pelo médium Rubem de Farias Júnior — que dizia incorporar o espírito do "doutor Fritz". Dizia-se que tinha mau relacionamento com o irmão Guilherme Figueiredo (escritor, tradutor e dramaturgo), a ponto de não comparecer ao seu sepultamento, em maio de 1997.

Nem mesmo o fato de ter sido torcedor apaixonado do Fluminense tornava Figueiredo mais simpático. O apresentador, cineasta e produtor musical Carlos Imperial também tentou, em seu programa nas noites de sábado, na extinta TV Tupi, tornar o general mais palatável com a "Dança do Figueiredo" — cujo refrão era um alegre, mas desajeitado, "Figueiredo!, Figueiredo!".

Antes de deixar o Palácio do Planalto por uma discreta saída privativa, reuniu-se com o general Walter Pires e tentou visitar Tancredo. Conseguiu apenas conversar brevemente com D. Risoleta Neves, mulher do presidente eleito. Voltou à sede do governo, encontrou-se com alguns ministros, disse umas poucas palavras de agradecimento e deu por encerrado o mandato.

Publicado originalmente no Correio Braziliense

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