Se o presidente Donald Trump confirmar partes de suas promessas a ordem mundial será alterada, e não para melhor (Foto: Charly Triballeau) |
Em grande parte do século 20 tanto o Brasil como toda a América Latina viveram sob estrita dependência dos Estados Unidos, dependência que várias vezes assumiu a forma de pura submissão e de relativização das nossas próprias soberanias. Com o fim da Guerra Fria e com o nosso amadurecimento econômico e político, já não se pode dizer que fazemos parte da esfera de influência americana, como costumava ser no passado. O Brasil é hoje um país plenamente soberano, age com total autonomia política e tem relações econômicas diversificadas. Nosso principal parceiro comercial é a China e não mais os Estados Unidos e nada indica que isso possa mudar.
Apesar disto, a sucessão presidencial americana que se aproxima poderá ter mais influência em nossa vida do que qualquer outra em nossa história, agora, não porque somos um país subdesenvolvido da América Latina, mas porque somos um país relevante no mundo. Se o presidente Donald Trump confirmar mesmo uma pequena parte do que tem prometido, a ordem mundial, na economia e na política, será completamente alterada, e certamente não para melhor.
Desde o fim da Segunda Guerra, as alternâncias de poder político nos Estados Unidos transcorreram sem grandes surpresas ou ansiedades, porque não modificavam certos consensos fundamentais na política econômica e na política externa. Desta vez será diferente, pois as eleições deram o poder a um movimento anti-institucional, expressão de uma sociedade posta em situação defensiva e temerosa do futuro, diferente da América cheia de autoconfiança e de orgulho com que havíamos nos acostumados a lidar.
O novo governo recebeu um amplo mandato para tentar interromper o ritmo da evolução histórica que tem relativizado o poder político e econômico dos Estados Unidos e que encaminha o mundo para uma ordem global multipolarizada. Para este fim, o novo governo estará dispensado de obedecer a regras no plano internacional, mesmo que essas regras tenham sido constituídas sob a forte liderança da América e tenham servido até agora aos seus interesses. E estará também liberado para desafiar internamente às próprias instituições do Estado de Direito, para o que contará com uma maioria parlamentar domesticada e uma Suprema Corte maleável e claramente politizada.
O que um povo decide livremente fazer com o seu país é um problema seu. No entanto, dado o peso e a força dos Estados Unidos, com seu exército, suas empresas, suas universidades, sua moeda, tudo que lá ocorre transborda para o mundo. No plano da geopolítica, a desmontagem das instituições internacionais pode transformar o mundo em um campo selvagem. Se os Estados Unidos podem invadir o Panamá e ocupar o canal, a Rússia tem todo o direito de invadir a Ucrânia e seguir adiante para defender seus interesses. Ocupar a Groenlândia pela força será o fim da Otan e da proteção da Europa diante das autocracias que a rodeiam. Tudo o que resultou da vitória da Segunda Guerra estará sepultado, e a paz de 1945 a 2025 parecerá um dia apenas uma pausa na eterna tragédia da história humana.
Na economia, a imposição unilateral de tarifas para ressuscitar a indústria americana vai desencadear respostas retaliatórias e tornar o comércio internacional um campo de batalha, retrocedendo a um ambiente que, no século passado, gerou recessões e guerra. O comércio deixará de ser uma relação econômica entre empresas e consumidores para se transformar em uma questão de Estado e de hegemonia política.
A ordem internacional em que vivemos tem muitos defeitos e a muitos parecerá injusta. Mas basta imaginar um mundo sem a ONU, sem a Organização Mundial da Saúde, sem a Organização Mundial do Comércio, para se ter a certeza de que algum dia teremos saudade deste mundo que estamos em vias de perder.
Publicado originalmente no Correio Braziliense
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