10 de novembro de 2024

Da "comadre Jacqueline" a Donald Trump, por Guálter George

Beira o ridículo a excitação de políticos de direita diante da possibilidade do novo governo americano pressionar as nossas autoridades (Arte: Carlus Campos)

Vou começar hoje por uma história que, desde criança, me faz gargalhar, atribuindo-se o protagonismo, na versão que conheci, a uma figura folclórica de Iguatu, onde nasci e vivi toda a infância e parte da adolescência. Contava-se o caso de uma pessoa de família humilde que, ousada, escrevera à Casa Branca convidando o então presidente John Kennedy para ser padrinho do seu filho, um tempo depois recebendo correspondência protocolar do governo americano com um "aceite" do poderoso político. Assim seguiram até o dia em que chegou a notícia de que Kennedy havia sido assassinado, o que fez a mãe da criança cair em incontrolável choro por imaginar como estaria àquela hora "a comadre Jackeline!".

Um (bom) tempo depois volto à história, já tendo dúvidas se, como imaginei sempre, tratava-se mesmo de uma piada. É que reações observadas entre nós desde a vitória de Donald Trump na corrida presidencial norte-americana, no Brasil e no Ceará, colocam-se no mesmo plano do inacreditável e estabelecem algumas relações diretas que não existem, indicando como natural uma consequência imediata por aqui. A voz mais eloquente nesse sentido é a do ex-presidente Jair Bolsonaro, com alguns registros que chegam ao estágio do ridículo.

Bolsonaro, por exemplo, anunciou que pediria autorização ao STF para ir à posse de Trump em 20 de janeiro, na expectativa natural de que seja convidado, questionando o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo recolhimento do seu passaporte diante da condição atual de investigado por crimes que teria cometido na época em que presidia o País, se ele "terá coragem de dizer não ao homem mais poderoso do mundo". Uma visão colonizada que não deveria ser expressa por alguém que já esteve na condição de principal autoridade brasileira e que, parece, se movimenta com planos de um dia voltar à posição. Ele, mais do que qualquer outro entre aqueles que o seguem politicamente, deveria saber que a soberania é a primeira característica de um Estado nacional, ou seja, que o Judiciário brasileiro não tem qualquer obrigação de julgar um pedido considerando a força geopolítica que eventualmente tenha seu signatário. Não é uma questão que lhe diga respeito.

A vitória de Trump, parece claro, estabelece um horizonte político diferente e com dificuldades novas para o governo Lula, olhando-se apenas para o ambiente político. Há uma oposição ainda mais animada em relação aos embates esperados para a metade final do mandato do petista como presidente que vai até janeiro de 2027, fortalecida pelo que acaba de acontecer, mas, repita-se, imaginar um efeito imediato, meio que nos transformando numa colônia sem capacidade de tomar decisões por si, parece muito pouco condizente com o discurso de quem se arvora nacionalista e defensor de valores brasileiros. É, incoerentemente, a base do discurso desse grupo.

Beira o ridículo, por exemplo, a excitação de políticos de direita, alguns com mandatos populares outorgados por eleitores cearenses, diante da possibilidade do (futuro) novo governo dos Estados Unidos pressionar as nossas autoridades por uma mudança de atitude em relação à tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 que deixou um rastro de destruição nos endereços institucionais de poder no País. Com viés antipatriótico evidente, porque alguns deles chegam a estimular a ideia de medidas sancionadoras contra o Brasil, indiferentes ao fato de que isso prejudicaria o interesse econômico nacional. O eleitor distante da bolha ideológica na qual vivem estes, realmente entenderá que o fim (atrapalhar o governo Lula) justificaria o meio? Fica a pergunta.

Publicada originalmente no portal O Povo +

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