18 de junho de 2024

Como a discussão sobre aborto no Brasil passou de "exemplo" para chantagem política, por Ludmyla Barros

O projeto é de autoria do deputado carioca Sóstenes Cavalcante e teve a urgência pautada por Arthur Lira (Foto: Reprodução/CD)

Certos tópicos sociais no Brasil atravessam décadas sem grandes mudanças. “Eu fiz aborto”, estampava a capa da Revista Veja, de setembro de 1997. Na edição, oitenta mulheres, anônimas e famosas, como Hebe Camargo, Marília Gabriela e Elba Ramalho contam experiências de interrupção de gravidezes. São relatados sentimentos, como culpa e solidão, assim como denúncias de precarização e riscos na realização do procedimento.

Os relatos iam de encontro a uma ampla discussão sobre o tema, na época. Logo após a Constituinte, em 1988, foram apresentados seis projetos de lei, sendo a maioria com o objetivo de ampliar permissivos legais ou descriminalizar o aborto. Nos anos 1990, o número cresceu para 23 proposições da mesma natureza, em um cenário legislativo tomado como exemplo positivo por outras nações ao redor do mundo.

Quase trinta anos depois, a pauta do aborto continua presente nas discussões políticas brasileiras, mas não segue a tendência prevista décadas atrás. Antes pioneiro em projetos de lei pró-legalização, hoje o Brasil vai na contramão da maioria do resto do mundo, ao pautar no Congresso Nacional um PL não apenas contrário à legalização do aborto, mas favorável à criminalização dele.

Com regime de urgência aprovado no último dia 12 de junho, o Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara penas para a realização do aborto após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio simples: até 20 anos de prisão. A urgência faz com que o projeto dispense formalidades, apressando a tramitação e a votação da matéria.

A mudança do Congresso hoje, em relação aos anos 1990, começou a se intensificar em 2013, segundo a cientista política Paula Vieira. Nesta época, houve o início da formação da dita “bancada da bíblia, do boi e da bala”, que somava forças conservadoras em contraposição a pautas progressistas.

De fato, nas legislaturas iniciadas 1999 e 2003, ainda observava-se uma tendência mais progressista, quando foram enviadas 34 proposições direcionadas à legalização do aborto, muito por intermédio da Comissão Tripartite da Câmara. Nenhuma proposta, no entanto, chegou a ser aprovada e, ao longo dos anos, houve um aumento da reação conservadora.

“Em 2013, 2014, vimos um início da disputa em relação ao que seriam as pautas dos direitos humanos, entre conservadores e progressistas. Esse perfil do Congresso foi se alterando, e, de 2018 pra cá, se ampliou ainda mais. Os brasileiros estão elegendo mais perfis conservadores para o Congresso”, diz Paula Vieira, professora na Universidade Federal do Ceará.

Dentre os fatores para esse escalonamento nos nomes de direita está a presença cada vez mais constante de representantes religiosos em pequenas comunidades, angariando o voto nas mais diversas instâncias políticas: desde o legislativo municipal até o Executivo nacional. Este último âmbito também provocou um ápice na defesa do conservadorismo, com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que, por sua vez, deu origem à corrente do “bolsonarismo”, que permeia o Congresso atual.

Dos 513 deputados federais, 202 são considerados integrantes da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional. O partido com a maior bancada é de direita: o PL, com 96 representantes. Assim, a configuração influencia no movimento de partidos do dito “centrão”, que tendem a ir com a maioria.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), integra esse espectro político e tende a simpatizar com os conservadores, facilitando pautas de interesse deste grupo, como ocorreu com o PL do aborto. Essa movimentação, segundo Paula Vieira, visa, em especial, dois objetivos: a eleição de um sucessor para a Presidência da Câmara, no início do ano que vem, além de uma possível candidatura para o Senado Federal, em 2026.

Já os bolsonaristas se utilizam das pautas para ampliar suas bases eleitorais. “Vemos isso agora nas eleições municipais. É uma forma de dialogar com possíveis lideranças que vão apoiá-los futuramente”, diz a cientista política.

Nesta configuração, o Executivo, de esquerda, estaria mais preocupado em negociações, com a tendência de abdicação de algumas pautas em detrimento da aprovação de outras. No caso do aborto, o líder do Governo na Câmara, José Guimarães, chegou a afirmar que a matéria “não era assunto de Governo” e sim do Parlamento, em uma declaração polêmica, que provocou uma retratação depois.

“O Governo está em um período de enfrentamento com o Legislativo. O Congresso vem barrando o poder de agenda do executivo. [Com a declaração], Guimarães estava evitando um confronto direto com a Câmara. Se o Governo entrar em conflito, outras pautas que eles buscam aprovar vão sair prejudicadas: o Legislativo não vai querer entrar em acordos futuros”, explica Paula Vieira.

Com isso, as articulações escanteiam os reais impactos das pautas de costumes e discussões sociais se transformam em “chantagem”, com estratégias eleitoreiras. A mudança, neste caso, parte de pressões da população, que segue pautando o debate em meios midiáticos como revistas, como antigamente, mas também nas redes sociais e nas ruas.

A aprovação da urgência do PL do aborto acarretou uma série de discussões e protestos em todo o País, com milhares de pessoas integrando manifestações de oito estados brasileiros. Assim, a matéria, antes supostamente prevista para ser discutida e aprovada no mesmo dia, deverá ser arquivada.

Para Paula Vieira, o combate deve seguir presente, muito de forma natural. “Toda ação tem reação”, ela diz. “Em certos avanços nas pautas sociais, os homens brancos e de classe alta entendem que perdem privilégios. Por isso que se fortaleceu tanto uma direita no Brasil. Mas agora as mulheres reagiram, para trazer o debate de forma mais qualificada, para que não se perca na questão moral, trazer aspectos que envolvem vidas, sobrevivência, direito reprodutivo. Então há uma reação e seguirá havendo.

Brasil vai na contramão de outros países

Atualmente, o aborto não previsto em lei é punido com penas que variam de um aos três anos, quando provocado pela gestante ou com seu consentimento, e de três a dez anos, quando feito sem o consentimento da gestante.

A lei permite o aborto nos casos de estupro; de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). Atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal.

No cenário global, o Brasil integra a lista de 43 países nas quais o aborto é permitido somente em casos de vida ou morte. Em classificação da Organização das Nações Unidas, essa configuração é uma das mais conservadoras e está acima somente dos países nas quais o procedimento é totalmente proibido, cenário presente em 22 países.

A maior parte dos países, 77, permite a realização do procedimento, mediante solicitação. Outros 12, mediante motivos sociais ou econômicos. Além disso, 47 permitem por motivos de saúde e outros dois (Estados Unidos e México), contam com legislações variadas.

Segundo Irlena Malheiros, especialista em Saúde Pública, pesquisas nacionais e internacionais apontam para a legalização do aborto como a melhor solução para a saúde pública. A permissão, neste caso, não se refere a um incentivo ou uma obrigação, mas ao oferecimento de segurança nos procedimentos.

“O ideal seria criar todo um trabalho muito bem articulado que garanta os direitos sexuais e reprodutivos a meninas e mulheres. Isso impactaria na redução dos números de violência, de gestações e de abortos”, diz profissional, graduada na Universidade Estadual do Ceará.

Irlena ainda cita o impacto da PL em casos de violência sexual contra menores de idade que, mesmo com o aborto legal nestes casos, ainda enfrentam dificuldades em interromper a gestão. “Se esse projeto passa, o Estado soltará de vez a mão dessas meninas, falhando na proteção antes da violência e negando proteção depois da violência”, diz.

Já a criminalização, para ela, tende a gerar "mais abortos na ilegalidade, sem a mínima segurança para meninas/mulheres." "Isso causará mais emergências e mais óbitos. Homens que abusam não terão mais o menor medo de abusar, afinal a vítima estará ainda mais amordaçada pelo Estado. Isso vai aumentar número de casos, consequentemente mais problemas para as áreas de saúde e segurança pública", afirma Irlena.

"Legalizar o aborto e criminalizar quem aborta são coisas diferentes. Quando você legaliza, você libera aborto nos termos da lei. Quando você criminaliza quem aborta, você responsabiliza criminalmente quem comete o aborto. Não precisa legalizar o aborto para descriminalizar quem aborta. No Brasil, o aborto não é livre. Essa pauta é uma desculpa moralista para manipular facilmente a opinião pública", acrescenta a especialista.

Publicado originalmente no portal O Povo +

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