26 de outubro de 2023

Justiça masculina, branca, hétero e católica: o perfil do Judiciário brasileiro, por Karyne Lane

Estátua de Themis, a deusa da Justiça na mitologia grega, no saguão de entrada do Tribunal de Justiça do Ceará (Foto: Fco Fontenele)

Nas mãos da deusa da mitologia grega Têmis, que aparece de olhos vendados, a espada e a balança com dois pratos iguais simbolizam imparcialidade, equivalência e poderio — uma representação que mostra que, se pudesse ser materializada em um ser, a Justiça seria feminina.

No Brasil, porém, a venda nos olhos da divindade parece ocultar uma realidade evidente que não faz jus a essa personificação: a maior parte das 63 milhões de ações judiciais em tramitação distribuídas entre as instâncias do Poder Judiciário no País está nas mãos de homens.

Com aproximadamente 18 mil pessoas, a magistratura brasileira é predominantemente masculina, branca, heterossexual, casada e católica, conforme apontam os dados preliminares da 2ª edição do Censo do Poder Judiciário, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

É esse contingente de profissionais que julga processos e dele partem desde decisões de abrangência internacional, como a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas e a anulação das condenações de Lula na Operação Lava Jato, até casos de repercussão nacional como o julgamento da chacina do Curió, o mais longo da Justiça cearense, ou, mais recentemente, o imbróglio jurídico em torno da guarda de uma criança de seis anos cujo pai é réu por estupro.

Passada uma década do primeiro Censo, realizado em 2013, que já demonstrava a predominância desse perfil, o Judiciário continua sem refletir a diversidade da população brasileira: 82,7% dos magistrados são brancos , 59,6% são homens  e 94,6% são heterossexuais.

A coleta de dados demográficos, sociais e econômicos do CNJ também indica que a maior parte dos magistrados (79,9%) está casada ou em união estável com pessoa de outro sexo; 8,3% são divorciados e 8,5%, solteiros. Há, ainda, 2,2% de casados ou em união estável com pessoa do mesmo sexo.

Em relação à crença religiosa, o maior percentual é da religião católica: 55%. Espíritas representam 12,4% e 9,6% se dizem sem religião, enquanto outros 3,7% preferiram não informar a religião que praticam e 3,6% se declararam ateus. Os evangélicos responderam por 3,1% do total e as demais religiões representaram menos de 1% cada.

Outro dado importante é de que esses profissionais estão mais estressados e ansiosos por motivos como a carga de trabalho e o salário, considerado insuficiente para a quantidade de responsabilidades e demandas executadas: 58% dos juízes e das juízas e 38% dos servidores e das servidoras afirmam sofrer estresse; a ansiedade, por sua vez, atinge 56% da magistratura e 48% dos servidores e servidoras.

A saúde mental da força de trabalho da Justiça demanda também um fortalecimento da política de combate ao assédio, já que cerca de 25% dos juízes e das juízas e 24% dos servidores e das servidoras disseram já ter sofrido ao menos um episódio de assédio no trabalho.

Estão entre as principais queixas dos membros da magistratura o esgotamento emocional (34,1%) e o esgotamento físico (28,9%). Além disso, de 90% que se diziam satisfeitos ou satisfeitas por pertencerem aos quadros do Judiciário em 2013, o índice caiu para 64% em 2023.

“Precisamos de mais magistradas mulheres, negros e negras, de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, das mais diversas religiões, provenientes de todas as classes sociais. Só assim poderemos refletir a verdadeira pluralidade da nossa população e compreender os seus reais anseios”, afirma Renata Gil, juíza criminal no Rio de Janeiro.

Primeira mulher presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) em 70 anos de existência da entidade, na gestão dela (triênio 2020-2022) foram organizados movimentos de impacto como o translado de juízas afegãs ao Brasil depois da volta do Talibã ao poder no Afeganistão.

“A presença de mulheres em posição de destaque no Judiciário brasileiro e na sociedade como um todo ainda é, inegavelmente, muito pequena”, reconhece Gil, que em 2023 foi eleita conselheira do CNJ por unanimidade.

Isso se deve, na perspectiva da juíza, às barreiras que as mulheres enfrentam quando buscam carreira na magistratura — e a primeira delas é “vislumbrar essa possibilidade como real”.

“Isso vem mudando bastante nos últimos anos, mas a carreira da magistratura ainda é majoritariamente masculina, tanto na prática, quanto no imaginário. A primeira dificuldade é a menina, a mulher, despertar para esse sonho”, avalia.

Outra dificuldade elencada por Gil diz respeito ao tempo de dedicação ao estudo: “O concurso é muito difícil, são muitas fases, exige muita concentração, muito estudo e, via de regra, muitos anos de esforço continuado. A gente termina a faculdade com vinte e poucos anos, e a vida segue seu curso. Em pouco tempo começam as cobranças ‘não vai casar?’, ‘não vai ter filhos?’”.

Juíza criminal no Rio de Janeiro, Renata Gil foi a primeira mulher presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) em 70 anos de existência da entidade(Foto: Renata Gil/Acervo pessoal)

“Para a mulher é uma cobrança muito cruel, porque há um tempo biológico que para o homem não existe. O homem pode ter filho até mesmo na terceira idade, já as mulheres até os 30 anos, via de regra. Em uma sociedade machista e patriarcal, a escolha é quase sempre abrir mão da carreira em prol da família”, observa.

“Particularmente posso dizer que sou uma exceção à regra, pois tive todo o apoio da minha família e do meu marido para me dedicar e estudar. Passei logo e tive filhos já depois do concurso. Mas essa não é a realidade da maioria das mulheres”, alude.

Gil julga que “uma magistratura mais diversa e com oportunidades iguais só tende a melhorar a já excelente qualidade da magistratura brasileira. A empatia é fundamental e o juiz se utiliza dela o tempo todo para acessar situações que desconhece; mas lugar de fala é diferente de ser empático. Ter vivenciado uma situação é completamente diferente de entender racionalmente e se solidarizar com aquilo”.

Por isso, na percepção da magistrada, que também já presidiu a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), a discussão em torno da próxima presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria da ministra Rosa Weber ganha força.

“O STF é o órgão máximo de interpretação da nossa Constituição, que tem como um de seus objetivos fundamentais ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’. Como atingir esse objetivo se ele próprio não reflete a diversidade da nossa população?”, coloca.

Gil ressalta que essa não é uma crítica à atual composição do STF, “que é academicamente excelente e foi essencial nos últimos anos para a manutenção da Constituição e da própria democracia. Mas é uma reflexão para que, daqui para frente, possamos dialogar no sentido de ampliar visões”.

“Um STF diverso é a garantia de que a Constituição será interpretada pela ótica das mais variadas vivências e isso contribui sobremaneira para uma sociedade pacificada. A ministra da Corte suprema americana Ruth Ginsburg, recentemente falecida, disse algo relevante sobre isso: ‘nunca nos incomodamos quando a corte era composta só de homens’. Eu acrescento: por que não pode ser composta, pelo menos metade, por mulheres?”, indaga.

“A ausência de mulheres no Judiciário ocorre em todos os níveis e instâncias”, sentencia a desembargadora federal Cibele Benevides, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).

Benevides cita o relatório Justiça em Números 2023, produzido pelo CNJ, que indica que somente 38% de toda a magistratura brasileira é integrada por mulheres: “Desembargadoras (juízas de segunda instância, ou seja, de tribunais) são 25%, e ministras (juízas dos tribunais superiores, situados em Brasília) são 18%. Percebe-se um afunilamento do número de juízas quando se caminha em direção às cúpulas, ao topo”.

“A Justiça Federal, da qual faço parte, é a que possui o número mais reduzido de magistradas, sendo 31% de mulheres, enquanto na Justiça Estadual são 38% e na Justiça do Trabalho, 49%”, detalha.

Procuradora da República de carreira, com atuação no Rio Grande do Norte, a atual desembargadora verifica que, “apesar de ser o segmento da justiça com maior número de mulheres em seus quadros, a Justiça do Trabalho, por exemplo, é a que menos indicou magistradas para assento no CNJ, locus próprio para se pensar o Judiciário brasileiro e suas políticas de melhoria, o que indica algumas contradições visíveis quando se trata de participação feminina na ambiência de poder”.

Para Benevides, a importância da maior presença de magistradas, considerando-se também a interseccionalidade de gênero e raça, “não significa apenas a concretização do princípio da igualdade no âmago do Poder Judiciário e da representatividade como expressão da democracia”.

“Trata-se, efetivamente, da expressão do princípio constitucional do acesso à justiça. Garantir à população brasileira um sistema de justiça plural, com uma perspectiva de gênero e raça, especialmente um Poder Judiciário que reflita a diversidade, é assegurar o pleno acesso à justiça”, garante.

“Tornei-me, ano passado, desembargadora de um tribunal que durante décadas somente foi composto por homens. Até então, o TRF5 tinha tido apenas uma desembargadora, oriunda do quinto constitucional da vaga dos advogados: a querida Dra. Margarida Cantarelli, hoje aposentada. Ela sempre se dizia imensamente feliz por ter sido a primeira mulher a vestir a toga no TRF5, mas imensamente triste por ter sido a única”, revela.

A jurista sobreleva que “apenas no ano passado o TRF5 promoveu duas juízas federais de carreira: Dra. Joana Carolina, primeira juíza federal promovida por merecimento; e Dra. Germana Moraes, primeira juíza federal promovida por antiguidade. Quando entrei, pouco depois, pelo quinto constitucional do Ministério Público Federal (MPF), o TRF5 passou a ter, dentre os 24 desembargadores, pela primeira vez, 3 mulheres”.

“Sinto-me muito honrada por compor esse pequeno arquipélago de mulheres (nas palavras da Dra. Margarida Cantarelli, nossa pioneira): a competentíssima pernambucana Dra. Joana Carolina, e a respeitadíssima Dra. Germana Moraes, cearense, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e que é, inclusive, um nome fortemente apoiado internacionalmente e em toda a região Nordeste, para a vaga da ministra Rosa Weber no STF”, declara.

Quanto às barreiras enfrentadas por mulheres para disputar o cargo de juíza no Brasil, a desembargadora destaca que “são culturais e inúmeras”: “apesar de a porta de entrada ser, em tese, igualitária, já que a regra é o concurso público, nossa cultura impõe às mulheres as tarefas de cuidado com a família, as crianças e os idosos”.

“Em regra, se a mulher for da elite brasileira, com acesso à boa educação, solteira e sem filhos, ela consegue se aproximar dos homens nessa disputa. Porém, quando se trata de mães, as dificuldades aumentam. Diante do que se cobra da mulher em termos de dedicação, é muito difícil compatibilizar com a carga de renúncia de tempo disponível para estudos, uma vez que os concursos para a magistratura são extremamente difíceis, como deve ser”, salienta.

Outro fator dissuasivo, na opinião de Benevides, é o deslocamento geográfico: “Ser juiz num país continental como o Brasil, indubitavelmente leva a pessoa aprovada no concurso a se deslocar para comarcas, varas ou seções judiciárias distantes, e muitas mulheres não conseguem o apoio dos maridos ou companheiros para a decisão de mudança. Isso as leva a desistir. A nem tentar. A mulher, culturalmente, larga tudo e acompanha o marido; o contrário não ocorre com a mesma facilidade”.

“Eu consegui passar em concursos porque – e sou ciente de meus privilégios – contei com acesso à boa educação e estímulo de pais que tinham feito curso superior e que, desde muito cedo, me asseguraram que a mim nada era vedado em razão do meu gênero, que eu poderia fazer tudo o que um homem pode”, sublinha.

Às mulheres que sonham em seguir carreira na magistratura, a desembargadora frisa: “Não desistam. É difícil para todos, e mais difícil ainda para nós, mulheres. Quando trazemos a interseccionalidade do corte de raça e de classe social, mais difícil ainda. Mas o Poder Judiciário precisa de mais mulheres”.

“Os jurisdicionados precisam de diversidade na magistratura, para que os olhares que julgam nossos processos reflitam, de verdade, democraticamente, a pluralidade do nosso povo”, finaliza.

Publicado originalmente no O Povo +

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