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17 de outubro de 2023

Com saber ancestral e técnica, trabalho das parteiras resiste no Ceará

O trabalho das parteiras tradicionais resiste e ainda tem presença demarcada no Interior do Ceará (Foto: Letícia Brandão)

O processo de “dar à luz” já passou por diversas evoluções durante a história. Antes da medicalização e da chegada dos hospitais a comunidades de difícil acesso, o nascimento dos bebês era realizado pelas mãos de mulheres que, a partir da prática e do conhecimento ancestral, auxiliavam as gestantes durante e depois do parto.

O trabalho das parteiras tradicionais resiste e, apesar da queda nos últimos três anos, ainda tem presença demarcada no Interior do Ceará. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), 135 nascidos tiveram parto assistido por uma parteira no ano passado. Em 2021, foram 229 e, em 2020, esse registro chegou a 269.

Parteira tradicional há mais de dez anos e residente de Juazeiro do Norte, no Cariri Cearense, Samara Simões, de 38 anos, atua na região no espaço Roda Semear — onde também promove, junto com o marido, aulas de yoga e capoeira — e já realizou mais de 100 partos. Samara conta que, apesar de não ter outras parteiras na família, viu o ofício chegar como um “chamado” que causou uma reviravolta na vida dela.

Durante a época em que morou em Pernambuco, Samara, que tem formação em Teatro e, inicialmente, pensava em seguir a carreira artística, teve contato com outras duas parteiras tradicionais, que repassaram todo o conhecimento que envolve o partejar.

“Parteiras tradicionais não decidem se tornar parteiras. A gente nasce parteira e, em algum momento da vida, recebe o chamado e vai compreendendo que a gente nasceu parteira [...] Ser parteira não é só aprender tecnicamente a segurar o bebê e a proteger a mãe nesse momento incrível, mas aprender muitas coisas sobre a vida”, disse.

Para muitos, o partejar é considerado um conhecimento geracional, passado entre as mulheres da família. Por outro lado, Samara aponta que essa tradição nem sempre é algo transferido entre gerações e que muitas parteiras se descobrem de forma independente.

Outro ponto levantado por ela é o fato de que realizar um parto não exige uma “fórmula” única. Dentre os conhecimentos utilizados durante o processo, ela destaca que há saberes intuitivos e diversificados, especialmente pelo fato de as parteiras estarem inseridas em diversos contextos familiares e culturais.

“Observar a família para além do fisiológico, compreender de forma mais profunda os sinais do parto, utilizar as plantas medicinais quando necessário durante a gestação e o pós-parto, trabalhar com terapias de curas naturais e tradicionais e a reza, independente da religião, porque atendemos famílias de todas as crenças, são saberes tradicionais e ancestrais”, cita.

Samara explica que encontros entre parteiras tradicionais são comuns, como os realizados pela organização Cais do Parto, entidade pernambucana que oferece apoio a parteiras e dissemina culturas e tradições relacionadas ao parto.

“A escola serve para nos orientar e direcionar, serve como um despertar para a cura de vários aspectos do feminino. Não seria necessariamente uma formação, eu vejo como uma guiança nessa caminhada do partejar.”

Além dos encontros, há vários coletivos de parteiras espalhados pelo Brasil. O coletivo cearense Ao Sagrado Nascimento, por exemplo, fundado por Thatiane Terra, reúne mães, aprendizes de parteiras e outras profissionais do Estado com o objetivo de criar um espaço de compartilhamento de saberes.

Aos 43 anos e mãe de cinco filhos que nasceram pelas mãos de parteiras tradicionais, Thatiane relata que iniciou no trabalho após auxiliar o parto de uma vizinha. Ela conta que também adquiriu o conhecimento a partir do contato e da troca de experiências com outras parteiras.

“Eu saí conhecendo parteiras no Brasil. Parteiras com quem eu aprendi, com quem eu me formei, com as quais eu acompanhei muitos partos, grandes aprendizados e profundas relações. São mulheres que mexeram comigo, reviraram por dentro e me ajudaram a me conhecer como mulher [...] Esperei o momento certo. Compreendendo que esse era um caminho que não necessitava de pressa”, relembrou.

Nos partos, Thatiane atua junto a uma equipe composta por uma aprendiz de parteira e uma doula, profissional que oferece auxílio emocional para a gestante. O trabalho começa antes mesmo do parto em si, e, durante todo o período da gravidez, a parteira realiza um acompanhamento com a futura mãe.

Para ela, o pré-natal médico hospitalar e a transparência com a gestante, principalmente em casos de emergência, são indispensáveis.

“Em possíveis situações emergenciais, a gente precisa contar com o hospital. Em casa, a gente tem um limite mais reduzido de atuação em termos de emergência. É realmente uma forma de nascer muito segura, porém eu observo, como parteira, todas as nuances e os cuidados que a mulher precisa em uma necessidade de emergência.”

Thatiane analisa que o trabalho da parteira vai além dos limites do interior do Estado e aponta que as parteiras tradicionais nunca vão deixar de existir.

“Essa visão de que o trabalho da parteira é realizado apenas no Interior já é muito antiga. Graças à sabedoria ancestral, as parteiras nunca vão morrer e elas nunca estão limitadas a um espaço. A maneira como a gente escolhe nascer é única e é muito visceral. Então, nós estamos em toda parte, somos parteiras tradicionais, estamos vivas e nosso ofício permanecerá vivo”, considerou.

Reconhecimento das parteiras tradicionais

Mesmo com a importância de um trabalho que percorre décadas, Samara e Thatiane apontam o preconceito com as parteiras tradicionais. O serviço é reconhecido pelo Ministério da Saúde e pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Em 2011, o trabalho das parteiras foi incluído na Rede Cegonha — programa de assistência a gestantes que foi retomado no governo Lula — como elemento de saúde comunitária.

Porém, muitas pessoas ainda não têm noção sobre o que é o trabalho da parteira tradicional e carregam estereótipos relacionados à profissão.

De acordo com Samara Simões, as mulheres que fazem parte do Movimento de Parteiras Tradicionais do Brasil realizam encontros periódicos em que discutem situações desafiadoras que vivenciaram ou ainda vivenciam dentro do sistema.

Uma das principais demandas é o maior acesso das parteiras às Declarações do Nascido Vivo (DNV). O documento é emitido após cada nascimento de um bebê e é utilizado para que a criança seja registrada em cartório. A declaração, que deve ser preenchida com informações sobre o parto, é fornecida pelas Secretarias Municipais de Saúde (SMS) às instituições que realizam partos.

No caso de partos realizados em casa, o nascido vivo também tem direito à DNV, e as parteiras devem se cadastrar na SMS. No entanto, parte das mulheres que realizam o parto domiciliar apontam que já tiveram o acesso à declaração negado.

“A maioria das parteiras já viveu isso, e algumas famílias, consequentemente, têm dificuldade em fazer o registro do bebê. A gente tem buscado, cada uma em sua região, se vincular à Secretaria de Saúde de cada município, para que conheçam o nosso trabalho e tenham a confiança de emitir a DNV ou autorizar que a gente preencha. Essa é uma demanda que ocorre no Brasil inteiro”, enfatizou.

Thatiane, que mora no município de São Gonçalo do Amarante, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, conta que garantiu o registro como parteira tradicional pelo Ministério da Saúde a partir do cadastro, porém aponta que o preenchimento do documento em algumas cidades ainda é bastante limitado.

“Quando nascidos em casa, com parteiras, algumas cidades ainda dificultam essa entrega, e é muito importante que nós, parteiras tradicionais, possamos preencher essa DNV, porque fomos nós que assistimos o parto. Então, nós sabemos dos dados daquele bebê e somos responsáveis por aquele nascimento.”

Em 2021, o Ministério emitiu uma nota técnica desaconselhando o parto domiciliar e considerando o hospital como o local com maior segurança para a realização do procedimento. Na época, o comunicado repercutiu, e uma carta de repúdio foi feita por parte dos profissionais da área.

A carta concordou com a pasta ao apontar que “a escolha do local do parto deve ser balizada pelo protagonismo da mulher ou pessoa gestante”, porém apontou que o Ministério da Saúde falhou ao assumir um “posicionamento binário” e não apresentar diferentes alternativas, como as casas de parto vinculadas ao SUS.

A nota técnica foi divulgada durante a administração do ex-presidente Jair Bolsonaro. O POVO entrou em contato com a atual gestão da pasta e aguarda resposta sobre o assunto.

Publicado originalmente portal O Povo +


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