4 de outubro de 2023

A face feminina da Constituição Cidadã, por Salete Maria da Silva

Neste 5 de outubro de 2023 a Constituição Federal completa trinta e cinco anos de vigência. Diversos eventos serão realizados nas mais variadas instituições com vistas à celebração da histórica da data, haja vista a importância, para nós brasileiros e brasileiras, de se comemorar o nascimento da “Constituição Cidadã”. Não resta dúvida de que o momento é mais do que propício para a realização de reflexões críticas acerca do conteúdo do Texto Magno, com destaque para o seu legado jurídico-político que precisa ser conhecido, analisado, disseminado e reafirmado continuamente pelos cidadãos e cidadãs, ainda que muitos outros desafios ainda estejam colocados para a sociedade e o Estado brasileiro nas próximas décadas.

No entanto, uma característica comum à maioria dos eventos comemorativos do natalício da Magna Carta é o seu caráter androcêntrico, isto é, a adoção de uma perspectiva masculinista de mundo que sempre coloca os homens, seus direitos, seus interesses e “seus grandes feitos” no centro das reflexões em torno de qualquer debate relacionado ao fenômeno constitucional. E esta característica está muito presente em toda a sociedade, haja vista a cultura patriarcal na qual estamos imersos e imersas e da qual somos produtos e produtores, consciente ou inconscientemente.  

Por isso, tanto os temas contidos nos cards, como a programação das celebrações e o próprio perfil dos/as palestrantes corroboram o que, em teoria feminista, tem-se nomeado como cegueira ou “insensibilidade de gênero”, isto é, uma incapacidade de se enxergar a presença, as demandas e, sobretudo, as inúmeras contribuições que as mulheres brasileiras aportaram às normas constitucionais em vigor, seja durante a Assembleia Nacional Constituinte ou mesmo após, mediante esforços pedagógicos e interpretativos que favoreçam uma aplicação mais inclusiva, democrática e justa do Texto. E tais contribuições versam sobre a igualdade de gênero e seus inúmeros desdobramentos no seio da sociedade, a exemplo de leis e políticas públicas destinadas à superação das assimetrias e inúmeras formas de violência contra as mulheres em nosso país, sem olvidar do debate acerca da sub-representação feminina nas esferas decisórias e a naturalização da supremacia masculina nos espaços de poder.  

Destarte, e para quem adota um enfoque de gênero, notadamente o interseccional, torna-se cada vez mais perceptível as insuficiências, para não dizer as incoerências, contidas nos discursos hegemônicos acerca da feitura e do legado da Carta Magna e, ainda que muitos destaquem seus avanços e limites em termos de implementação, especialmente nos eventos promovidos por entidades ou órgãos vinculados ao sistema de justiça, praticamente inexiste qualquer menção à intensa e profícua participação feminina na elaboração do texto constitucional e os efeitos positivos decorrentes desta atuação, especialmente no que concerne à ampliação dos direitos e da cidadania feminina no país.

A escassez de reflexões acerca da participação mencionada, bem como das conquistas alcançadas pelas mulheres através do chamado “lobby do batom”, decorre, em grande medida, não somente do total desconhecimento da referida atuação, mas, como dissemos, de uma visão de mundo que confere maior visibilidade, prestígio e valor aos feitos dos grandes homens em detrimento da ação política feminina. E tudo isso reforça a manutenção dos privilégios masculinos nos espaços decisórios, assim como as suas vozes e interesses, muitas vezes disseminados como “interesses de toda a nação”.

Visando suprir esta lacuna, em minha tese de doutorado, defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2011[1], tratei de evidenciar a intensa participação e contribuição das mulheres na elaboração da Lei Maior, o que pode ser identificado na obra intitulada “A Carta que Elas Escreveram: as mulheres na Constituinte de 1987/88”, publicada em 2016 pela editora Instituto Memória, onde destaco, de maneira pormenorizada, a luta incessante das mulheres, dentro e fora do Parlamento Nacional, durante o período da Assembleia Nacional Constituinte, para se verem reconhecidas não somente como sujeitos de direito constitucional, mas como cidadãs capazes de apresentar demandas e convertê-las em direitos fundamentais, sejam eles individuais (civis e políticos), sociais, econômicos ou culturais.

Na mencionada obra, dou especial ênfase ao modo como foram vencendo barreiras, sobretudo de gênero, num espaço constituído majoritariamente por homens, onde elas eram apenas 25 mulheres num universo de mais de 500 parlamentares. Evidencio, com fotos, fatos e falas, como ousaram enfrentar a chamada “divisão sociossexual e racial do trabalho” dentro do ambiente da Constituinte, assumindo posições, atribuições e colocando na pauta da Assembleia diversas  questões relacionadas à igualdade de gênero na sociedade como um todo, mas com destaque para as relações de trabalho, as responsabilidades familiares, o contexto educacional e, em especial, cobrando responsabilidades do Estado para com o enfrentamento da violência ocorrida no seio familiar e doméstico.

Naquele contexto, as mulheres borraram a falsa dicotomia entre o público e o privado, e trataram de exigir a intromissão do Estado em casos de violência contra mulheres, idosos e crianças, pavimentando o caminho para as leis específicas sobre o tema que surgiram posteriormente.

Demonstro, ainda, como as demandas das mulheres, que outrora eram conhecidas através de palavras de ordem e/ou como reivindicações políticas verbalizadas em movimentos de rua, convertem-se em normas constitucionais que passaram a exigir uma nova abordagem jurídica e social, além de uma outra visão da teoria clássica do Direito e da própria Constituição, que não raro descrevia a Constituição como um pacto declaratório de direitos e estruturante do Estado, sem destaques para demandas de grupos específicos ou para questões tidas como de matéria infraconstitucional, como a temática da violência doméstica, das creches, da licença maternidade, da amamentação em caso de mães privadas de liberdade, dentre outras.

Enfim, advogo que as conquistas obtidas pelas mulheres no âmbito de diversos artigos do Texto Constitucional,  deve ser creditada, principalmente, à estratégica articulação política das mesmas na Assembleia Nacional Constituinte que, através das 26 deputadas eleitas e, sobretudo, através da pressão exercida pelos movimentos feministas e de mulheres,  conseguiu, mobilizando-se de norte a sul e de leste a oeste do país, apresentar emendas populares capazes de eliminar séculos de subordinação legal das mulheres aos homens e sua exclusão das instâncias de poder.

Registro que foi graças à atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher-CNDM, que as mulheres brasileiras lançaram, em 1985, a campanha Mulher e Constituinte, cujo lema era: “Constituinte prá valer tem que ter palavra de mulher”. Esta campanha permitiu que discussões e debates acontecessem entre as mulheres das mais diversas classes sociais, raças e etnias, durante meses, por todo o país, resultando na elaboração da “Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes”, a qual foi entregue ao Congresso Nacional no dia 26 de agosto de 1986, pelas mãos de mais de mil mulheres, cuja ação, conforme já foi dito, ficou conhecida como o “lobby do batom”.

Esta carta, sistematizou reivindicações de muitos anos de lutas e a pressão constante das mulheres na Constituinte, articulando de maneira inédita e suprapartidária, aspectos de democracia representativa com democracia participativa, possibilitou que 80% do que fora requerido fizesse parte do atual texto Constituição Federal. Portanto, não é por acaso que em seu artigo 5º, inciso I, a Constituição diz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, e no inciso XLI deste mesmo artigo, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais”.

E, somente para citar algumas questões bem específicas sobre as quais dou detalhamento no meu livro, vale pontuar que há influência da ação das mulheres na elaboração dos seguintes artigos e incisos do Texto Constitucional: artigo 5º, incisos I e L; artigo 7º, incisos  XII; XVIII; XIX; XX; XXV; XXX; artigo 189; artigo 201, incisos II; V; artigos 201, no seu parágrafo 7º, I e II; artigo 226; dos parágrafos 3º ao 8º; artigo 227,  especialmente no seu parágrafo 6º, além de vários outros que não tratam especificamente de demandas femininas mas que foram fortemente influenciados pelo mencionado “lobby do batom”.

Concluo afirmando que é preciso evidenciar a face feminina da Constituição Federal de 1988, pois, uma vez acessando os conhecimentos desenvolvidos acerca do constitucionalismo feminista e devidamente convencidas/os do papel transformador que o Direito pode e deve desempenhar (malgrado os seus limites no âmbito de uma sociedade ainda marcadamente androcêntrica, classista e racista), seremos capazes de reivindicar, finalmente, “para os homens, nenhum direito a mais e, para as mulheres, nenhum direito a menos!”.

Leia também:

Ex-constituintes relembram promulgação da carta magna há 35 anos


Nenhum comentário:

Postar um comentário

A Administração do Blog de Altaneira recomenda:
Leia a postagem antes de comentar;
É livre a manifestação do pensamento desde que não abuse ou desvirtuem os objetivos do Blog.