O sistema de distribuição e fila é totalmente público no Brasil e mais de 90% das cirurgias são feitas pelo SUS (Foto: Getty Images) |
O Brasil tem uma das maiores filas do mundo, mas também criou e mantém o maior sistema público de transplantes. O país é o segundo que mais realiza esse tipo de procedimento, atrás apenas dos Estados Unidos, que é privado. Em 2022, foram quase 26 mil cirurgias de transplante no Brasil, entre os quais 359 de coração. As mais comuns foram de córnea (13,98 mil), rim (5,3 mil) e medula óssea (3,99 mil), segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). O país tem ainda mais de 600 hospitais autorizados a fazer transplantes.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o sistema brasileiro é bastante completo e funciona bem, servindo inclusive de modelo para outros países.
"O sistema de transplantes brasileiros é reconhecido internacionalmente por ser inteiramente público e oferecer serviços em um país gigantesco e muito povoado", diz Alcindo Ferla, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em saúde pública.
"Além disso, também é reconhecido pela qualidade técnica e das políticas públicas envolvidas."
Ainda assim, precisa de mais recursos financeiros para se tornar mais eficiente e menos desigual, diz o médico Leonardo Borges de Barros e Silva, coordenador da Organização de Procura de Órgãos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
"O processo de doação e transplante no Brasil é excelente, especialmente quando comparado a outras partes do Sistema Único de Saúde [SUS]. Mas, como todo o sistema, está subfinanciado e há desigualdade", diz.
"A espera por um órgão pode variar conforme o Estado do Brasil em que o paciente está. Os índices de doação também variam muito entre as regiões do país."
Segundo os especialistas, o principal gargalo para aumentar a eficiência está no momento da doação: muitas famílias ainda hesitam em permitir a doação após o falecimento e nem sempre há equipes hospitalares totalmente preparadas para lidar com o momento.
Como
funciona o sistema
O primeiro transplante no Brasil foi realizado em 1968, mas o sistema brasileiro como conhecemos hoje só foi criado muito depois, em 1997.
Ele foi inspirado, entre outros, no modelo da Espanha, considerado um dos mais eficientes do mundo.
O atual sistema é regulamentado pela Lei 9.434 de 1997.
A norma estabelece, entre outras coisas, a existência de dois tipos de doador: o vivo e o falecido.
No caso do doador vivo, podem ser cedidos um dos rins, parte do fígado, parte dos pulmões ou parte da medula óssea.
Nestes casos, a legislação brasileira permite que cônjuges e parentes de até quarto grau sejam doadores.
Para pessoas que não são parentes, a doação só é possível com autorização judicial.
No caso de doador falecido, tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento só podem ser retirados após o diagnóstico de morte cerebral e com autorização da família.
Um doador falecido após morte cerebral que não tenha sofrido parada cardiorrespiratória pode doar coração, bem como pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões.
Após a avaliação dos órgãos ou tecidos, as comissões dos hospitais cadastram dados relativos às partes do corpo em um programa informatizado que combina essas informações com os dados de possíveis receptores.
Já os pacientes são separados de acordo com o órgão que será transplantado, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas, como peso e altura.
Na hora de combinar o órgão com o receptor, leva-se em conta a posição na lista única, mas também esses critérios.
"Pacientes em estado crítico podem ser atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica", explica o Ministério da Saúde em nota.
Esse sistema computadorizado é de responsabilidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e gerenciado pela Central de Transplantes de cada Estado.
Há também outras entidades envolvidas no processo de identificação e distribuição dos órgãos, tais quais as Organizações de Procura de Órgãos (OPO) e os Bancos de Órgãos e Tecidos.
Após identificado um receptor, o órgão é enviado pela Central de Transplantes ao hospital onde está o paciente para que seja implantado pela equipe transplantadora que acompanha a situação clínica.
Em geral, esses processos não levam mais do que algumas horas e, apesar de na maioria das vezes o transporte ser realizado por terra, em casos de mais urgência podem ser usados helicópteros ou aviões.
Nesses casos, há colaboração da Força Aérea ou de companhias aéreas privadas que possuem convênio com o governo para transporte gratuito de equipes e órgãos em voos comerciais.
Um coração pode demorar no máximo quatro horas para ser transplantado após a retirada do corpo do doador. Em contrapartida, um pulmão ou um fígado podem esperar até seis horas.
Como chefe da OPO do Hospital das Clínicas, Leonardo Borges de Barros e Silva explica que há muitas etapas e pequenos entraves no processo que muitas vezes não são de conhecimento público.
"A pessoa que se inscreveu há mais tempo para transplante vai estar no começo da fila. Mas há outros critérios que incidem no processo, como compatibilidade – no caso do rim se leva em consideração questões imunológicas genéticas, por exemplo – tamanho, peso e altura do doador e estado de saúde do receptor", diz.
"Se o primeiro da fila está com covid, por exemplo, ele não poderá receber o órgão, e o sistema vai buscar o próximo mais compatível."
Os órgãos geralmente são destinados a receptores em uma mesma região, já que há pouco tempo para transporte. Mas Barros e Silva explica que, por vezes, há transporte entre Estados.
"Existem casos de priorização nacional, determinados pelo sistema", diz.
"Mas também há casos de Estados que não realizam alguns procedimentos, como transplante de coração, e a equipe de outra região precisa ir até lá retirar o órgão e transportá-lo".
Para Alcindo Ferla, um dos maiores trunfos do sistema brasileiro é sua transparência e justiça.
"Nenhum médico ou autoridade pode decidir nada sozinho no processo, seja no momento da doação ou do transplante", diz.
"E fatores como condições econômicas tampouco importam, todos têm que esperar sua vez seguindo os mesmos critérios".
Qualquer cidadão também pode acompanhar a lista única de espera e ter acesso aos critéios de prioridade pelo site do Sistema Nacional de Transplantes ou das secretarias estaduais de saúde.
Custos
e manutenção
O sistema de distribuição e organização da lista de espera é totalmente público no Brasil, e mais de 90% das cirurgias são feitas pelo SUS. Os pacientes recebem toda a assistência, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante
A maioria dos planos privados de saúde não cobre este tipo de tratamento, cujo custo pode variar de R$ 4 mil a R$ 70 mil.
No caso do SUS, o financiamento vêm do Ministério da Saúde e é gerenciado pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), um órgão da pasta.
Para este ano, o investimento previsto no sistema é de R$ 1,33 bilhão, ante R$ 1,06 bilhão gasto no ano passado – um aumento de 31%.
Mas Eraldo Moura, coordenador do Sistema Estadual de Transplantes da Bahia, explica que esse não é todo o financiamento disponível.
"Na Bahia, por exemplo, temos um cofinanciamento estadual para um programa de incentivo ao transplante e à doação de orgãos, além dos aportes do Ministério da Saúde", diz.
Além disso, o processo da cirurgia e o acompanhamento após o procedimento também contam com a participação e o financiamento dos Estados. A responsabilidade pela formação dos profissionais especializados também é dividida.
Desigualdade
e eficiência
Mas apesar de ser referência em termos de atendimento gratuito e justo, especialistas fazem críticas à eficiência do processo de busca de doadores e concretização da doação.
O Brasil tem atualmente 13,8 doadores efetivos para cada 1 milhão de habitantes.
Para efeito de comparação, Estados Unidos e Espanha, os dois países com melhores índices, tem respectivamente 41,6 e 40,8 doadores efetivos para cada 1 milhão, segundo os dados mais recentes do Registro Internacional de Doação e Transplante de Órgãos.
Em contrapartida, o Brasil está na frente de outros países desenvolvidos, como Alemanha, Israel e Coreia do Sul.
"Precisamos melhorar em termos de financiamento, não só para o processo em si, mas também para a formação de profissionais mais especializados e para a produção de conhecimento e pesquisa científica sobre o tema", diz Alcindo Ferla, da UFRGS.
Segundo o pesquisador, a população brasileira ainda não é tão envolvida com a doação de órgãos como a de outros países, o que influencia muito no tamanho da fila de espera no país.
Além disso, falta formação de profissionais totalmente preparados para lidar com as famílias de possíveis doadores em todo o território brasileiro, diz.
"A mobilização da sociedade em torno desse tema é um fator importante. Criar uma cultura de doação entre a população e colocar o tema na agenda pública de debate."
"A expectativa de algum familiar receber um órgão se houver necessidade em algum momento precisa ter como contrapartida a disponibilidade de fazer a doação e de se envolver mais", diz.
Analistas consultados pela BBC News Brasil afirmam ainda que, apesar de o sistema brasileiro ser totalmente público, a desigualdade regional ainda é uma realidade.
"O sistema nacional de transplantes é um reflexo da realidade do país. Os Estados com menor IDH ou PIB per capita são os que têm mais dificuldade com doação e transplante também", diz Barros e Silva, do HCFMUSP.
Os Estados com maior número de transplantes por habitante são Paraná, São Paulo e Santa Catarina, segundo dados da ABTO. Já os com o menor número são Roraima, Alagoas e Maranhão.
Enquanto no Paraná foram realizados 40,4 transplantes por milhão de habitantes em 2022, em Rondônia, a média foi de 2,2 procedimentos por milhão.
O maior sistema de transplantes do mundo é atualmente o dos Estados Unidos.
O país realizou mais de 42 mil procedimentos em 2022, segundo o governo americano.
O sistema, porém, não é público. Em geral, o receptor do órgão ou seu convênio médico devem pagar pelo procedimento, enquanto a família do doador não é cobrada.
Apesar de os Estados Unidos serem o país que mais realiza transplantes todos os anos, o modelo americano é bastante criticado internamente.
Atualmente, 104 mil pessoas estão em listas de espera, e 17 pessoas morrem todos os dias à espera de um transplante, segundo a Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos, uma organização ligada ao Departamento de Saúde e que controla o sistema.
Críticos afirmam que a gestão da instituição não é eficaz e que pacientes pobres e de minorias raciais são menos beneficiados pelo sistema.
Já o sistema espanhol é considerado por especialistas como o mais eficiente.
Os procedimentos são realizados pelo sistema público de saúde de forma gratuita.
Mas diferente do Brasil, na Espanha todos os cidadãos pagam taxas periódicas de seguridade social que garantem seu acesso à saúde pública.
Outro ponto que diferencia o sistema é a forma como as doações são conduzidas.
Segundo a lei local, todo cidadão é um potencial doador: as famílias podem impedir a doação após o falecimento, mas se pressupõe que qualquer espanhol que tiver morte encefálica e estiver em condições de saúde terá seus órgãos doados.
No entanto, o governo diz que não é esse modelo que garante o sucesso do sistema, mas sim as medidas de conscientização da população e o desenvolvimento das técnicas usadas.
"A Espanha é a grande referência mundial para formação de equipes específicas para entrevistas com familiares de possíveis doadores", diz Eraldo Moura.
"Mas independentemente de qualquer coisa, o cidadão espanhol é pró-doação de órgão. Esse tema já faz parte da cultura local", completa Barros e Silva.
Segundo os especialistas, a implementação do modelo espanhol que considera todo cidadão como doador não necessariamente funcionaria no Brasil.
O país, inclusive, testou por um curto período de tempo o chamado consentimento presumido, segundo o qual os órgãos de uma pessoa falecida só não seriam doados caso houvesse uma manifestação clara da família.
A regra foi determinada pela própria Lei 9.434 de 1997, mas alterada pelo governo federal por meio de uma Medida Provisória em outubro de 1998.
"De nada adianta uma lei assim se não há diálogo com a população sobre os verdadeiros propósitos e sobre a importância da doação", diz Alcindo Ferla.
"Muitas
pessoas acreditam que o corpo do ente falecido vai ser profanado ou têm crenças
religiosas que as impedem de autorizar a doação. Essa falta de conhecimento
sobre o tema e a falta de equipes especializadas para conversar com as famílias
são os principais gargalos do sistema atualmente."
Com
informações portal Correio Braziliense
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