Vista
parcial da cidade de Nova Jaguaribara (Foto: Júlio Caesar)
O
novo lugar da velha cidade foi planejado para cerca de 70 mil pessoas. Os
mortos foram os primeiros moradores. O cemitério da antiga cidade tinha cerca
de 200 túmulos quando foi interditado em maio de 1999. Parou de receber
sepultamentos porque, os corpos só podem ser desenterrados após dois anos.
Antes de a nova e planejada Jaguaribara receber os vivos, os cadáveres da
cidade antiga foram exumados e transferidos. As ossadas estão dispostas em
gavetas nas paredes do cemitério da cidade nova.
Na vez dos vivos, a cidade planejada recebeu os pouco mais de 7 mil habitantes da antiga Jaguaribara. Na mais recente estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a 1º de julho deste ano, são 11.580 habitantes.
A equipe do jornal O POVO foi a Jaguaribara na semana passada. O nome da cidade é Jaguaribara, apenas, e há rejeição à alcunha dada no marketing governamental da época, "Nova Jaguaribara". A data de celebrar o Município é o 9 de março, quando houve a emancipação, em 1957. Para as pessoas com quem O POVO conversou, o 25 de setembro é propício para refletir sobre o que ficou para trás, as promessas da mudança e a cidade que ainda é sonhada pela população.
Até 2012, a antiga Jaguaribara ficou encoberta pelas águas do Castanhão. Os cinco anos de seca até 2016 fizeram com que, gradualmente, ruínas ressurgissem no meio das águas, trazendo as memórias de antigos habitantes em um luto que perdura.
Na edição do jornal O POVO de 14 de agosto de 2001, a jornalista Eleuda de Carvalho deixou o registro da descrição de como era o ponto central da cidade velha que, semanas depois, começou a ser demolida:
"A cidade rasa tem um pequeno outeiro central, olhando a praça. No meio dele, uma calçada alta rodeia a igreja que está sob a proteção dupla de Santa Rosa de Lima e de São Gonçalo. No adro, uma imagem da padroeira se assenta num pedestal, ao lado do cruzeiro. O prédio de arquitetura simples, bem ao modo das igrejas velhas do sertão, está pintado de amarelo claro com frisos de cor mostarda. Há uma torre no alto de onde se avista todo o sertão em volta. Desse minarete simplificado, o sino anunciava as funções, o toque de missa, o dobre soturno dos finados. Esses badalos não se escutam mais. O sino e os santos do altar já estão em sua morada."
A
"terra prometida"
A Igreja Matriz da cidade de Jaguaribara foi construída idêntica à Igreja original da cidade que foi submersa pelas águas do Castanhão (Foto: Júlio Caesar) |
A propaganda da mudança da população prometia uma Jaguaribara que se tornaria lugar ideal de desenvolvimento. Por um lado, trouxe dignidade a muitas famílias que nunca nem sonharam com a perspectiva de casa própria. O Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) fez cadastro as famílias, que tiveram direito a uma casa simples ou maior, conforme aquela que possuíam. Quem não tinha casa, mas podia provar que morava em Jaguaribara havia certo tempo ganhou uma residência nos moldes mais simples, as de mutirão.
Por
outro lado, nenhum dos moradores estava pronto para a ruptura com o território,
que começou a partir de 25 de setembro de 2001.
"Vejo
o trauma das pessoas, principalmente, pela sensação da perda do território e da
certeza de que não pode voltar para o lugar onde vivenciou a juventude,
infância e outros momentos da vivência", disse a psicóloga Fátima Bertini,
cuja tese de doutorado, Mudanças urbanas e afetos: estudo de uma cidade
planejada, analisa o trauma e o luto dessa população por meio de entrevistas
com os antigos moradores e com crianças que já nasceram na nova cidade.
"Muitos
me falaram durante as entrevistas que sonhavam andando na cidade inundada e que
pisavam nas calçadas, nas praças. Os entrevistados disseram também, em
contrapartida, que nunca sonharam estar na cidade nova", explica Fátima.
Na
tese, ela ressalta que os mais velhos desacreditaram da história. Falavam:
"Isso é conversa! Onde já se viu construir uma cidade do zero?" O
projeto da construção foi liderado por um time de arquitetos cearenses e contou
com participação popular. O maior símbolo era uma réplica em tamanho maior da
igreja que havia na cidade antiga.
Apesar
dessa busca por elos de identidade que tornassem o novo território palpável
para a população, Fátima explica que essa reconstrução afetiva tem de vir de
dentro para fora. "Não adiantava para eles ter uma igreja igual, porque
ali não era a vida deles", disse Fátima.
Para
a professora de História Reginalda Brito, é sempre um desafio quando a
questionam sobre o lugar de onde nasceu. "Uma vez estava numa aula na
faculdade e um colega me perguntou de onde é que eu era. Eu disse que era de
uma cidade que não existe mais. Você já pensou o quanto isso é doloroso?"
Ela aponta que não existe elo na atual Jaguaribara que acenda o sentimento de
pertencimento da população tão poderoso quanto o rio Jaguaribe, que atravessava
o meio a cidade hoje inundada.
Apesar de demonstrar o orgulho que a população de Jaguaribara sente por ter deixado seu território por um bem maior, a construção do Castanhão, Jeso Freitas acredita que, se as estruturas das casas da antiga Jaguaribara estivessem de pé, a cidade antiga teria voltado a ser morada dos jaguaribarenses quando as águas baixaram.
A
cidade planejada do Ceará
A
nova cidade, assim que foi entregue, possuía uma uma população de 3.689 pessoas
na área urbana. Parte da população rural ficou em assentamentos em municípios
vizinhos. O custo de construção, em 2001, foi de R$ 71.082.721,08. O sistema de
saneamento é um aterro com 26 hectares, quatro estações elevatórias de esgoto e
uma estação de tratamento, composta de três lagoas de estabilização.
Das
novidades da cidade inaugurada há 20 anos, os antigos moradores costumam
ressaltar nas entrevistas a estação de telefonia móvel celular. Durante muito
tempo, o único telefone da cidade velha era o fixo da paróquia.
Foram
entregues 1.030 casas. Foi construído um mercado público, um matadouro, seis
centros comerciais varejistas, dois centros comerciais atacadistas, agrupando
juntos 100 lojas. Doze praças e um parque urbano, com arborização e paisagismo.
Duas igrejas católicas, sendo uma delas réplica da igreja da cidade antiga, uma
igreja evangélica e o cemitério. Um Liceu, uma escola com oito salas de aula,
duas creches e duas quadras esportivas. Um posto policial, uma delegacia
distrital, um hospital com 30 leitos e um centro de saúde.
As
casas eram todas brancas com as portas pintadas de azul. Algumas mais simples,
construídas em mutirões. Outras maiores e mais pomposas, mas tudo semelhante.
Aos poucos, os moradores vão modificando: pintam fachada, aumentam muro, mudam
o portão e tornam a casa irreconhecível em relação ao imóvel entregue em 2001.
De acordo com Fátima Bertini, essa foi uma das potencias identificadas em sua
pesquisa junto a população sobre como esse elo com a cidade pode ser construído
a partir dessas modificações nos lares.
A
alcunha cidade-fantasma é usada de forma recorrente pelos moradores entrevistados
para definir as ruas depois das 20 horas. Com vias muito largas e retornos
extensos, a sensação remete a um tipo de solidão. Diferentemente da cidade
antiga, onde maioria das casas eram conjugadas, muros, hoje altos, rodeiam as
residências atuais.
Reflexo de uma cidade planejada para mais gente do que há hoje. A população de pouco mais de 11.500 habitantes é pequena para a cidade desenhafa para 70 mil. Pior, a arrecadação e as transferências constitucionais correspondentes não sustentam a estrutura. Ao longo das gestões que já passaram nesses 20 anos, muitos dos equipamentos foram fechados ou abandonados.
Castanhão:
redenção de Jaguaribara e salvação da Capital
Vista aérea do açude Castanhão (Foto: Júlio Caesar)
As
grandes quadras chuvosas na trajetória hídrica do Ceará mostram que,
ciclicamente, em diversos períodos da história recente, a água em excesso
trouxe tantos problemas quanto as secas. De acordo com registros do
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), em 1974 choveu cerca de
17,8 bilhões de metros cúbicos; em 1985, 19,9 bilhões de metros cúbicos. Já em
2009, última quadra com grande volume de chuvas, foram 8 bilhões de metros
cúbicos.
As
enchentes do rio Jaguaribe durante os dois primeiros anos citados foram
impiedosas com a população que vivia em municípios próximos ao curso do rio. A
de 1974 representou uma tragédia em Aracati. Populações ficaram ilhadas nos
pontos mais altos e precisaram ser resgatadas de barcos. Cidades ficaram sem acesso
terrestres, sofrendo privações de abastecimento de alimentos. Entre os
flagelados das enchentes havia mais de 500 crianças, segundo reportagem do jornal O
POVO da época.
Em
1985, ainda em fevereiro, o açude Orós já tinha sangrado com três dias de
chuva, anunciando as inundações que viriam. Naquela época, Orós era o maior
açude do Estado. Começaram, então, as discussões sobre a construção da barragem
do Castanhão. O acidente geográfico Boqueirão do Cunha, local onde hoje se
localiza a barragem, foi mapeado pelo geólogo americano Roderic Crandell, pela
então Inspetoria de Obras contra as Secas, Iocs, atual Dnocs, em 1910.
Até
1985, quando o Castanhão surgiu no horizonte, o Dnocs jamais havia previsto
qualquer reservatório de acumulação no Boqueirão da Cunha, de acordo com Cássio
Borges, engenheiro aposentado do órgão e autor do livro A face oculta da
barragem do Castanhão. Até hoje, Cássio sustenta a ideia do Castanhão ter sido
um erro, construído naquelas proporções. A ideia do órgão era da construção de
12 barragens de médio porte (200 a 500 milhões de metros cúbicos) no alto
Jaguaribe e na bacia do rio Salgado, no sul do Estado. Entre 1985 e 1989, a
imprensa cearense foi palco de discussões da comunidade científica e políticos,
em artigos, em torno da viabilidade ou não da construção do mega-açude.
A
ordem de serviço foi assinada em dezembro de 1995. Nesse ínterim, a população
viveu o impasse, à espera das águas do Castanhão e da nova morada. Nesse
período, relatou a zeladora do cemitério da cidade demolida, em entrevista ao O
POVO em 13 de dezembro de 1995, aumentou a morte de idosos. Ela diagnosticou
"desgosto" por ter de sair do local de origem. A transferência da
população foi anunciada em novembro do mesmo ano.
O Castanhão é o maior açude do mundo construído em região semiárida. Com capacidade de acumulação de 6,7 bilhões de metros cúbicos de água, surgiu como uma redenção do Nordeste, solução para o abastecimento hídrico da Capital e Região Metropolitana, até o complexo industrial e portuário do Pecém. O investimento foi de R$ 200 milhões, com os custos adicionais da construção da Jaguaribara.
De acordo com o engenheiro agrônomo e técnico do Dnocs Evandro Bezerra, os
açudes de Orós, Castanhão e Banabuiú têm praticamente a mesma vazão
regularizada com 12 metros cúbicos por segundo, 12,35 metros cúbicos por
segundo e 11 metros cúbicos por segundo, respectivamente. Ou seja: o fato de
uma barragem ser grande não significa necessariamente que os benefícios
hidrológicos sejam proporcionais. O Castanhão é seis vezes maior que Banabuiú,
e três vezes e meia maior que o Orós.
Um
dos pontos de maior contestação da barragem até hoje é evaporação, calculada no
Relatório de Impacto Ambiental (Rima) em 2.893,5 mm. A barragem tem forma de
prato raso. O espelho d'água é muito grande, o que significa maior evaporação.
De acordo com o técnico do Dnocs responsável pelo Castanhão, Braulino Coelho, 18 mil litros de água por segundo são liberados do açude para a Capital e Região Metropolitana. Atualmente, o açude está com 10,4% da sua capacidade. O açude sangrou pela primeira e última vez em 2004, quando houve inverno atípico, que acumulou 250 milhões de metros cúbicos em um dia. Em Jaguaribara, há quem diga que nunca mais sangrará novamente.
Com
informações portal O Povo Online
Clique aqui e leia reportagem especial do portal O Povo sobre os 20 anos da Nova Jaguaribara
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