Sem
surpreender ninguém, o presidente Jair Bolsonaro voltou a contrariar
orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde do
próprio governo e incentivou mais uma vez aglomerações de pessoas neste
domingo. Acenando para aliados da rampa do Planalto, abraçando pessoas e
apontando para o céu, deu talvez sua mais dura declaração sobre a crise
política que enfrenta até então: "Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa
semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa. Daqui para frente,
não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição".
Resta
apenas uma dúvida no discurso inflamado do presidente: de que limite Bolsonaro
está falando? Neste domingo, no mesmo dia em que o presidente aplaudia e dava
joinhas para uma aglomeração, o Brasil atingia o posto de 4º país com maior
número de vítimas da doença no mundo. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do
Ceará recebiam contêineres para preservar corpos de pacientes falecidos com
Covid-19.
No
balanço oficial, número de mortes no Estado foi a 663 e levou taxa de
letalidade da doença para alarmantes 7,9%. Na Capital, a procura por
sepultamentos é tamanha que tem obrigado cemitérios a formar "filas"
para enterros, a maioria relacionados ao novo coronavírus. Diante da escalada
rápida e macabra dos fatos, o negacionismo ideológico de Bolsonaro e seus
apoiadores radicais não parece só irresponsável, como cego e potencialmente
perigoso.
Se
o "limite" citado por Bolsonaro se refere às medidas de isolamento
social adotadas por governadores, frequentemente na mira do presidente, que
tipo de ação estaria planejando ele? Reverter na marra ações baseadas em
ciência e a experiência geral aplicada em quase todos os Países do mundo -
inclusive nos EUA de Donald Trump? Difícil imaginar, visto que o próprio
ministro da Saúde, Nelson Teich, tem sido categórico na impossibilidade de
reversão do isolamento durante o crescimento de casos.
Liberdade
de imprensa
Outro
possível interpretação para o "limite" citado por Bolsonaro seria de
sua própria relação com a imprensa, sempre o alvo favorito do presidente. Na
tarde de ontem, discurso inflamado do chefe do Executivo acabou tendo mais uma
repercussão direta entre sua militância, que agrediu a chutes e socos
jornalistas do Estado de S. Paulo que cobriam a manifestação.
No
mesmo domingo, era comemorado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, criado
pela Organização das Nações Unidas (ONU) para celebrar a importância do
jornalismo livre para qualquer sociedade que busque cumprir a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
O
que preocupa, de fato, Bolsonaro
Com
uma pandemia solta pelo mundo, era de se esperar que o presidente da República
estivesse se referindo ao vírus que vem matando e infectando a população que
ele governa. Uma frase soltada pelo presidente logo na sequência, no entanto,
sugere que a preocupação de Bolsonaro era outra. "Ela (Constitução) tem
dupla-mão. Não é de uma mão, de um lado só, não. Amanhã nomeamos novo diretor
da PF e o Brasil segue o seu rumo aí".
Contexto
é tudo: a fala de Bolsonaro é da manhã de domingo, no dia seguinte a depoimento
de mais de oito horas do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, em
Curitiba. Na oitiva, Moro teria reforçado acusações de que o presidente tem
tentado interferir politicamente na condução de investigações da corporação,
justamente pela troca da direção-geral da PF. Mais do que qualquer pandemia ou
problema econômico ou social, é o conteúdo das falas do ex-aliado que tira o
sono de Bolsonaro.
Nos
próximos dias, já devem aparecer os primeiros vazamentos das acusações
relatadas por Moro. Se isso representar o tal "limite" do presidente,
é algo a se preocupar. Se Bolsonaro se gaba de apoio das Forças Armadas, até
onde pode ir um chefe do Executivo acuado e que promete "fazer
cumprir" a Constituição? O quadro é grave, sobretudo levando em
consideração que estamos falando de um presidente que já falou "a
Constituição sou eu".
Publicado originalmente no portal O Povo Online
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