A professora Heloisa Firmo é coordenadora do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social da UFRJ (Foto: Acervo pessoal) |
Ciência
ampla e complexa, a Ecologia é a parte da Biologia que tenta explicar o
funcionamento de toda a natureza. A teoria de Gaia é uma hipótese da Ecologia
que estabelece que a Terra é um imenso organismo vivo. Elaborada pelo cientista
inglês James Lovelock, em 1979, ensina-nos que nosso planeta é capaz de obter
energia para seu funcionamento, enquanto regula seu clima e temperatura,
elimina seus detritos e combate suas próprias doenças, ou seja, assim como os
demais seres vivos, um organismo capaz de se autorregular. De acordo com a
hipótese, os organismos bióticos controlam os organismos abióticos, de forma
que a Terra se mantém em equilíbrio e em condições adequadas para sustentar a
vida.
Entender
as relações homem-natureza requer uma contextualização espaço-temporal que
inclui uma breve reflexão histórica da ocupação espacial do homem na Terra. O
nomadismo, que durou milhares de anos, foi a primeira forma de sobrevivência da
humanidade. O início da atividade agrícola, há 10 mil anos, fixou o homem,
tornando-o sedentário. Com o passar dos tempos, o sedentarismo aliado ao
desenvolvimento tecnológico, sobretudo após a Revolução Industrial, permitiu
que a população humana crescesse em ritmo exponencial. Consequentemente, os
seres humanos passaram a ocupar, cada vez mais, áreas silvestres, florestas,
com o intuito de explorar seus recursos para fins econômicos, especialmente no
contexto contemporâneo. Assim, avançaram sobre ecossistemas naturais,
transformando-os e destruindo espécies vegetais e animais.
Uma
maior exposição humana, as zoonoses, enfermidades naturalmente transmissíveis
entre animais e humanos, têm se verificado nesse processo. O vírus SARS-CoV-2,
supostamente oriundo de morcegos, é um exemplo do que, hoje, assola o mundo e
impressiona por sua velocidade de transmissão, seu potencial de perdas humanas
e pelo elevado nível de incertezas que traz consigo. Ainda não há cura ou
vacina para a COVID-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tampouco há
consenso quanto à possibilidade de reinfecção, entre outras questões. Vale
lembrar que muitas florestas também constituem reservatórios de zoonoses e,
portanto, os esforços para sua preservação ou uso sustentável devem ser respeitados,
sob o risco de favorecer ocorrências futuras de novas pandemias.
Seres
humanos e natureza são parte de um mesmo sistema, o sistema ecológico. E um dos
conceitos importantes na Ecologia é a resiliência dos sistemas, ou seja, a
capacidade de uma pessoa ou sistema se recobrar facilmente ou se adaptar a
crises ou mudanças. O professor e entusiasta da permacultura Rob Hopkins
explica essa noção por intermédio da seguinte metáfora:
“Em
uma sociedade resiliente, os principais ingredientes do bolo são produzidos
localmente, apenas são importados os produtos para o toque final (cerejas
cristalizadas e glacê, por exemplo). Em uma comunidade não resiliente, todos os
ingredientes básicos são importados, e apenas cerejas cristalizadas e glacê são
produzidos localmente. No caso de um choque energético (como o pico
petrolífero), uma sociedade com baixa resiliência é, portanto, extremamente
frágil, porque seu modo de vida depende quase inteiramente de um conjunto de
sistemas sociotécnicos globais que exigem muito transporte e energia: cerejas e
glacê não são suficientes para fazer o bolo”.
A
globalização mundial que faz do planeta uma imensa aldeia global, ao mesmo
tempo em que nos conecta com facilidade via internet, traz a evidência da
dimensão finita de nossos recursos. Em artigo publicado na Folha de São Paulo
de 22/3/2020, o filósofo Domenico de Masi lembra que, há alguns anos, Kenneth
E. Boulding, um dos pais da teoria geral dos sistemas, comentando a sociedade
opulenta, afirmou: “Quem acredita na possibilidade do crescimento infinito num
mundo finito ou é louco ou é economista”.
O
novo coronavírus circula livremente pelo mundo globalizado. Desprovido de
preconceitos quanto à raça, idade ou sexo, amplamente adaptável a todo tipo de
clima ou ecossistema, livre até mesmo de barreiras alfandegárias, transita pela
economia globalizada, causando estragos inimagináveis à saúde e à economia
mundiais.
A
teoria de Gaia permitiria supor que o SARS-CoV-2 é um dos elementos que
surgiram para favorecer a regulagem de um sistema que estava em desequilíbrio. Para
isso, a população humana estaria sendo reduzida, diminuindo a pressão por
recursos naturais. Iniciada possivelmente por um morcego, a COVID-19 é
espalhada nos humanos a partir dos mais ricos, ou seja, a pequena porcentagem
da população mundial que viaja de avião traz para a imensa maioria que não sai
de seus municípios o vírus letal, que, com a elevada velocidade de contágio,
inviabiliza sistemas de saúde, aumentando assustadoramente o número de vítimas.
No
sentido de priorizar a raça humana no planeta, faz-se necessário aumentar nossa
resiliência, o que pode ser feito fortalecendo-se os sistemas locais. Nesse
sentido, é necessária a consolidação de ações locais, tais como a agricultura
familiar, a economia solidária, a agroecologia, as moedas locais, isto é, um
movimento que vai parcialmente na contramão da globalização predominante.
Tratar com respeito e dignidade sistemas locais nos lembra alguns ícones desse
tipo de pensamento, como, por exemplo, a engenheira agrônoma Ana Primavesi, que
nos deixou no ano passado, aos 99 anos. Nascida na Áustria, adotou o Brasil
após a Segunda Guerra Mundial. Defensora ferrenha da agroecologia, ela nos
ensina:
“Ficamos
cientes de que, onde a técnica se choca com as leis naturais, a natureza é que
prevalece e domina. Devemos, portanto, reconhecer e aceitar esses limites,
fazendo o máximo possível em favor de nossa terra. É bela a agricultura e a
amamos mais ainda quanto mais vamos conhecendo a natureza. Acabamos com a ideia
de que a terra é apenas fábrica de alimentos. A terra não é fábrica e não
produz ilimitadamente”.
Ou
seja, os recursos não são ilimitados e podem ser mais bem utilizados se o
manejo agrícola for feito com o foco não na maximização de lucros, mas sim no
aumento da resiliência.
Publicado originalmente no portal da UFRJ
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