O Brasil
tem travado alguns debates que não existem em nenhum outro lugar do mundo. Pelo
menos, não envolvem ninguém de relevância no mundo, mas por aqui tornam-se
questões nacionais porque a discussão é encampada pelo presidente da República.
Há várias semanas Bolsonaro defende o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina
no tratamento contra coronavírus. Não tem nada de errado nisso. Há vários
relatos médicos de bons resultados no uso, mas há cuidados e mais pesquisas
necessárias. Não é uma polêmica ou uma disputa. Muito menos um debate político.
Mas, Bolsonaro defende seu uso na fase inicial da doença. O Ministério da Saúde
quer nos casos graves. O presidente é a favor do uso antes mesmo de a doença
estar confirmada.
Os
médicos têm prescrito o medicamento quando julgam necessário. O Ministério da
Saúde tem dado explicações detalhadas sobre a prescrição. Há possibilidade de,
para alguns pacientes, provocar taquicardia. Pode até levar à morte. Por isso,
antes de receitar o medicamento, há casos em que se pede eletrocardiograma. É
razoável.
Há,
sim, o receio de que a corrida pelo medicamento faça com que ele falte para
outros tratamentos para os quais é prescrito, como lúpus e malária. Quando o
presidente da República sistematicamente recomenda o uso, há também o risco de
automedicação, de pessoas tentarem estocar o remédio para o caso de adoecer.
Ele mesmo disse que divulga o tratamento há 40 dias. O que ele espera? Que
médicos passem a prescrever porque o presidente capitão do Exército recomendou?
Sobre
isso, Bolsonaro informou que componentes serão importados da Índia para
produzir a hidroxicloroquina no Brasil. É uma boa notícia e está dentro das
atribuições de um presidente.
O
que não está é esse embate em torno do tratamento médico. Como é possível que
isso seja discutido politicamente? Qual o fundamento?
Onde
Bolsonaro quer chegar com isso? Por que isso é tratado como questão ideológica?
Será mesmo que a única questão é garantir o medicamento para o maior número
possível de pessoas? É salvar vidas? Se for, ótimo. O uso está sendo realizado
já, com os cuidados necessários. Pesquisas são feitas e aprofundadas.
Mas,
existem procedimentos estabelecidos. O uso da hidroxicloroquina e da cloroquina
são o que se chama uso off label - ou seja, fora do prescrito na bula.
Normalmente, só ocorre em casos muito graves. Será que uma emergência como a
atual pandemia global justifica flexibilizar o uso? É um debate pertinente, que
cabe aos especialistas. Eu não tenho formação para esse debate. Também não sei
se Bolsonaro tem.
Uma
coisa importante é o debate não ser tratado como solução mágica para uma
emergência tão séria. A hidroxicloroquina não pode ser argumento para dizer que
o coronavírus não é tão sério assim. Que as pessoas não devem se preocupar
tanto. Se for usada assim, será um desserviço.
E
também não pode ser usada para Bolsonaro se apresentar como salvador que
descobriu a solução mágica. O tratamento já estava em uso e em estudo. O que
Bolsonaro fez foi explorar numa polêmica política difícil de entender.
Mais
um pronunciamento
Bolsonaro
fez ontem seu décimo pronunciamento em 15 meses. Mais que isso, foi o terceiro
em 15 dias. A frequência chama atenção. Bolsonaro sempre apostou mais nas redes
sociais que nos veículos tradicionais - todo mundo lembra como evitou/esnobou
os debates no rádio e na TV. Ocorre que a pandemia tem sido marcada por um
protagonismo do jornalismo profissional. Saúde é algo muito sério, muita gente
percebeu, para se informar pelo Whatsapp. Mais sério que eleição, por exemplo.
Além disso, com a quarentena, as pessoas assistem mais televisão. O núcleo
palaciano percebeu isso e sentiu o golpe. A guerrilha digital não tem sido
suficiente nessa guerra. Bolsonaro tem ido a programas, nunca teve presença tão
intensiva na TV. Mesmo quando não tem muito a dizer.
Publicado originalmente no portal O Povo Online
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