A família de Mika recebeu o livro pelo projeto Tinder dos Livros (Foto: Aurélio Alves) |
"Escrever
é o ato mais atrevido que eu já ousei e o mais perigoso. Escrever é perigoso
porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, a força de uma
mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém neste ato reside nossa
sobrevivência". Na década de 1980, a escritora norte-americana com
ascendência mexicana Gloria Anzaldúa redigiu uma carta para "mulheres de
cor" sobre as enunciações urgentes da escrita.
Historicamente,
o racismo afetou a publicação de autoras e autores negros. Segundo pesquisa da
Universidade de Brasília divulgada em 2018, 97,5% dos literatos no catálogo das
grandes editoras brasileiras são brancos. Mas, além dos desafios de difusão, o
acesso à literatura também é marcado pela questão racial. Na contramão dessa
lógica excludente, a ativista dos movimentos sociais negro e feminista Winnie
Bueno criou uma iniciativa transformadora: o Tinder dos Livros.
O
nome do projeto é inspirado no aplicativo de paquera, mas o match do Tinder dos
Livros é outro: interessados em doar obras literárias procuram Winnie via
mensagem direta no Twitter @winniebueno. Pessoas negras que precisam ou desejam
livros também escrevem uma mensagem pessoal para a articuladora com o título da
obra e o endereço para entrega.
De
Porto Alegre, no trajeto cotidiano de duas ou três horas entre as aulas do
Doutorado em Sociologia que cursa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
a gaúcha envia os dados de quem fez a demanda para o potencial doador.
"O
Tinder dos Livros surgiu de uma maneira quase autônoma: em 20 novembro do ano
passado, no Dia da Consciência Negra, eu compartilhei no meu Twitter a respeito
de uma percepção minha sobre pessoas se colocando como anti-racistas na
Internet, mas não repercutindo uma atuação anti-racista na prática. Falei que
uma das formas de fazer isso poderia ser doar um livro para uma pessoa negra
que precisasse para estudar. Várias pessoas se colocaram à disposição de doar e
começou essa corrente. A gente tem conectado pessoas", compartilha Winnie.
Em
quase um ano, o Tinder dos Livros já distribuiu cerca de 800 obras no Brasil
inteiro. A iniciativa também recebeu apoios importantes, como da editora
Companhia das Letras, que enviou 20 exemplares de Americanah, da nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie; do cantor Emicida, que doou 50 exemplares do seu
livro infantil Amora; da renomada filósofa e ativista do movimento negro Sueli
Carneiro, que disponibilizou dez exemplares de Escritos de uma vida e da
Estante Virtual, que contribui com livros raros.
Além
disso, personalidades públicas como Maria Rita, Paola Carosella e Leoni
somam-se à extensa lista de doadores — mas é o público em geral que movimenta o
projeto. "Tem gente de tudo que é lugar doando. Universitários,
professores, artistas... Uma gama grande de doadores que acreditam na educação
como uma ferramenta de transformação", continua a criadora da iniciativa.
Na última semana, aproximadamente 80 pedidos foram encaminhados por pessoas
negras. A ideia é automatizar parte desse processo, em parceria com o Twitter,
desenvolvendo um robô que funciona dentro das mensagens de Winnie. No futuro, o
projeto deve se tornar independente.
Sobre
a demarcação racial do Tinder dos Livros, Winnie explica: "A maioria da
população pobre no Brasil é negra. Além disso, os distanciamentos sociais são
marcados pela questão racial. Quando observamos o acesso à universidade pelas
políticas de ações afirmativas, marcadas por uma questão social, quem entra (na
academia) é uma grande maioria de pessoas brancas.
De
pessoas brancas pobres, mas de pessoas brancas. Isso significa que o pobre
negro não entra e não consegue acessar uma política somente social. A política
social vai ser acessada pelo branco pobre e muitas vezes ela se esgota antes de
chegar no negro. Necessariamente precisamos de um braço dessa política que seja
racial. Essa é uma das razões do Tinder dos Livros ser uma iniciativa voltada
para a população negra, porque também é uma forma de diminuir essas distâncias
que são ocasionadas por um sistema de dominação informado por uma hierarquia
racial. Precisamos de funções criativas que deem conta do problema do
racismo".
Entre
os livros mais pedidos, destacam-se obras escritas por intelectuais negras e
negros. "Mas as pessoas pedem o livro que elas precisam — de cálculo, por
exemplo. O fato é que existe uma procura e mercado para esses livros de pessoas
negras, mas que muitas vezes acabam sendo caros.
O
Pensamento feminista negro, tradução do livro de Patricia Hill Collins, está
custando cerca de R$65. É troco para algumas pessoas, mas para a maioria é
comida de duas semanas", argumenta Winnie. "Eu fico muito feliz de
ver como a literatura pode mudar a vida das pessoas. Mudou a minha e acho que
pode mudar a vida de muita gente", finaliza.
O
livro infantil do rapper paulista Emicida atravessou o Brasil e ancorou em
Fortaleza, no Jangurussu. A poeta e escritora Mika Andrade, mãe de Danilo e Clarice,
solicitou o livro Amoras para ler com os filhos.
"Eu
acho extremamente importante essa iniciativa da Winnie Bueno. Nem todo mundo
tem acesso aos livros e esse recorte é ainda mais difícil pra quem é
periférico", pontua Mika.
Para
ela, a leitura coletiva constrói uma aproximação familiar e também contribui
com a formação de novos leitores.
"É
o momento em que me aproximo dos meus filhos e construo uma afetividade maior
com os livros. Depois, entrego esses livros para bibliotecas comunitárias, como
a Livro Livre Curió, coordenada pelo poeta Talles Azigon". Assim, o
movimento de democratização da leitura se expande.
Quer
doar livros ?
Para
doar ou demandar obras literárias por meio do projeto Tinder dos Livros, basta
entrar em contato com Winnie Bueno por mensagem privada no perfil @winniebueno
na rede social Twitter
Com
informações portal O Povo Online
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