Com
a proximidade das manifestações pró-governo de 30 de junho, uma série de
publicações nas redes sociais passaram a reivindicar que o presidente Jair
Bolsonaro (PSL) decrete uma “intervenção militar constitucional” com base no
artigo 142 da Constituição. O pedido, porém, parte de uma leitura distorcida do
artigo, que determina as funções das Forças Armadas, mas não prevê qualquer
possibilidade de tomada do poder pelos militares.
Segundo
afirmam as publicações, o artigo 142 possibilitaria o fechamento do Congresso
Nacional e do STF (Supremo Tribunal Federal), instituições tidas por
bolsonaristas como empecilhos ao avanço de medidas propostas pelo governo. Para
os defensores da tese, o trecho da Constituição conferiria ao presidente poder
de convocar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem e defender o país
de seus inimigos, viabilizando, assim, uma “intervenção militar constitucional”
e uma “limpeza ética”.
Porém,
na verdade, o artigo 142 — ou qualquer outro trecho da Constituição — não prevê
a possibilidade de uma intervenção militar, restringindo-se a diretrizes sobre
o funcionamento das Forças Armadas. Mesmo que conclamados pelo presidente, os
militares não poderiam, dentro da lei, determinar o fechamento da Câmara, do
Senado, do STF e de outros tribunais. Hoje, as intervenções federais previstas
na Constituição dependem de autorização do Legislativo.
De
acordo com o professor de direito constitucional da USP (Universidade de São
Paulo) Rubens Beçak, a leitura feita pelos autores das publicações desvirtua o
real sentido do artigo e faz uma interpretação distorcida, que desconsidera o
contexto democrático do país.
Os
pedidos de intervenção a partir do artigo 142, porém, não são novos ou
exclusivos ao governo Bolsonaro: ocorreram durante os protestos contra a então
presidente Dilma Rousseff (PT), em 2014, repetiram-se no governo de Michel
Temer (MDB), em 2018, e, agora, são pauta que antecede as últimas grandes
manifestações no país. A trajetória coincide com o crescimento de movimentos
sociais que reivindicam uma intervenção militar no país.
Buscas.
Ao analisar os padrões de pesquisa no Google Trends, ferramenta gratuita do
Google, é possível notar um aumento no número de buscas relacionadas ao artigo
142 nos dias que antecederam as manifestações realizadas em maio último. Os picos
foram registrados nos dias 11 (pouco antes dos atos contra os cortes na
educação, no dia 15), 19 de maio (uma semana antes das manifestações
pró-governo Bolsonaro do dia 26) e 23 de junho, data próxima à dos protestos
do dia 30, também em favor da atual gestão federal, da Lava Jato e do ministro
da Justiça, Sergio Moro.
Quando
a busca na mesma ferramenta é feita com o termo “intervenção militar
constitucional”, percebe-se que a expressão, apesar de não ter sido buscada
atualmente, registrou picos em dias próximos aos protestos de 15 e 26 de maio.
Distorção.
Diferentemente do que afirmam as postagens, o artigo 142 não permite que as
Forças Armadas façam uma intervenção que resulte no fechamento do Congresso e
do STF. A Constituição não dá respaldo a qualquer ação desse tipo, e a tomada
de poder pelos militares, mesmo que temporária, seria equivalente a um golpe de
Estado.
De
acordo com o texto do artigo, as Forças Armadas “são instituições nacionais
permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina,
sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da
Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem". Isso significa que sua atuação em episódios
extraordinários deve ser sempre autorizada pelo presidente, que é chefe da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
Porém,
a ordem presidencial, somente, não basta. É necessário que o Congresso dê o seu
aval e reconheça a legalidade da ação para que as Forças Armadas sejam
efetivamente convocadas a realizar determinada tarefa.
Para
além disso, o artigo 142 elenca uma série de diretrizes sobre as funções,
direitos e deveres dos militares. Não há nada que indique a possibilidade de o
presidente “acionar” um dispositivo, como sugerem os posts analisados.
A
Constituição Federal prevê, no artigo 34, intervenção da União nos estados e no
Distrito Federal apenas nas seguintes situações: manter integridade nacional;
repelir invasão estrangeira; grave comprometimento da ordem pública; garantia
do livre exercício dos Poderes; reorganização das finanças estaduais; e
execução de lei federal, ordem ou decisão judicial.
Há
ainda a possibilidade de intervenção federal em razão da observância de
princípios constitucionais, como forma republicana, sistema representativo e
regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação
de contas da administração pública e aplicação do mínimo exigido da receita em
saúde e educação.
Em
todos esses casos, porém, é necessária a autorização do Congresso Nacional e da
Assembleia Legislativa local em até 24 horas. Nem todas as possibilidades
exigem o emprego das Forças Armadas.
O
professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo) Marcelo Figueiredo reforça que, do ponto de vista técnico,
qualquer interpretação que faça relação entre a Constituição e a possibilidade
de uma intervenção militar não tem qualquer base jurídica.
“Isso
é uma bobagem e incitação a golpe de Estado. O artigo 142 fala do papel das
Forças Armadas no Estado Democrático de Direito. Não há nada no artigo que
sustente essa interpretação”, ressaltou.
Origem.
O ainda deputado federal Jair Bolsonaro chegou a citar o artigo 142 durante os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff para
ressaltar a importância do apoio das Forças Armadas. Segundo ele, “em 2019,
quem chegar lá de boa fé vai precisar do apoio das Forças Armadas para
governar, o artigo 142 ao seu lado, para a manutenção da lei e da ordem”.
Apesar
de o vídeo com a fala de Bolsonaro ser anterior às eleições de 2018, ele passou
a circular nas redes sociais há cinco meses acompanhado de comentários que
interpretam a fala “o artigo 142 ao seu lado” como se esse trecho
constitucional permitisse acionar uma intervenção militar.
Rubens
Beçak lembra que a função das Forças Armadas é zelar pela manutenção da lei e
do Estado, e isso prevê o respeito aos três poderes — Executivo, Legislativo e
Judiciário — e às normas previstas na Constituição. Ele também critica um
argumento frequente nas redes sociais de que a suposta ineficiência dos tribunais
justificaria uma intervenção militar.
“Em
um sistema democrático, nada é imediato, mas você pode usar as polícias, o
Ministério Público e a Justiça para combater a corrupção. O processo é lento, e
você pode ou não concordar com a condenação de uma ou outra pessoa, mas o
sistema funciona”, afirmou.
Autogolpe.
No ano passado, em entrevista durante a campanha eleitoral, o ainda candidato a
vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) afirmou que o texto constitucional
permitiria que o próprio presidente desse um “autogolpe”, convocando as Forças
Armadas para garantir o funcionamento dos Poderes em uma situação que definiu
como “anárquica”. Em seguida, o general relativizou sua afirmação e mencionou a
lentidão do Judiciário como uma das razões para a sua fala.
“E
eu não vejo no momento que o Brasil está vivendo, com todas dificuldades que
nós temos, com um Congresso com muita gente envolvida em atos de corrupção, com
um Executivo sem conseguir realizar suas tarefas. Às vezes, com as reclamações
que nós temos em relação à lentidão do Judiciário, à falta de ação do
Judiciário. Mas prosseguem funcionando as instituições brasileiras”, disse
Mourão.
Publicado originalmente no portal Aos Fatos
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