Lula abraçado pela família em velório do neto (Foto: Ricardo Stucket) |
Há
momentos em que o impacto da realidade é tamanho que nos tira o ânimo para
fazer o que deve ser feito: escrever. Foi disso que vivi uma vida, foi isto que
sempre fiz. Hoje, quando o país mais uma vez se viu diante de um derrame de
bílis continental, desta gente que colocou em Brasília alguém que os ensinou e
os incentivou a odiar, ficamos acossados, perplexos, doloridos, em estado de
letargia. Quer dizer, falo por mim e alguns amigos que deixaram escapar queixas
semelhantes.
Eis
que Ricardo Kotscho, do alto do seu talento e da sua experiência, moveu as
teclas para confessar a mesma dificuldade. Mas foi até o fim. Fez o seu dever
de casa, como todos os que vivem da escrita e possuem um espaço para expor
ideias e sentimentos. Segui o seu exemplo de determinação e cá estou à frente
do meu teclado.
Kotscho,
que sempre esteve próximo dos Silva, me trouxe subsídios, descrevendo o que viu
lá dentro, no velório. As informações do colega, mais a foto acima, levaram-me
a um passado não muito distante e, infelizmente, cada vez mais ameaçador. À
medida que lia o seu texto, com o relato do ambiente do velório do pequeno
Arthur, veio à minha mente a entrevista que gravei com D. Avelina, mãe de
Marilena Villas Boas, a militante do MR-8, morta pela repressão, em uma rua sem
saída (Rua Niquelândia) em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, na
madrugada de 2 de abril de 1971, aos 22 anos.
O
corpo de Marilena estava pronto para ser enterrado como indigente, em caixão
lacrado, quando uma denúncia anônima avisou à família. Seu pai, o Dr.
Feliciano, era médico e na mesma hora partiu para o Hospital Central do
Exército (HCE), onde resgatou o corpo da filha para dar-lhe um enterro decente.
Durante a conversa com D. Avelina, pude perceber a força daquela mãe, que só
deixou aflorar a emoção quando relatou o velório da filha.
A família em torno
do caixão, cercada por agentes e homens armados de metralhadoras, que com a
simples presença os intimidava e os inibia de externar a dor. Ainda assim,
Avelina afastou as flores que cobria o corpo da filha, para se certificar do
seu estado. Tantos anos depois, relembrou detalhes. Os cabelos, que sempre
conservou longos, cortado à faca; os braços cobertos de hematomas e mordidas,
as unhas arrancadas.
A
cena de intimidação foi repetida no velório de Arthur, um menino de apenas 7
anos, deitado imóvel no caixão, vitimado pela meningite avassaladora que o
ceifou da família em horas, não oferecia perigo. O “perigo” estava postado ao
seu lado, devastado por uma dor inimaginável. O avô, e ex-presidente, Lula da
Silva, de 73 anos, sucumbido pela perda.
Filho
de uma analfabeta, desprovido de diplomas, vindo dos cafundós desse país
desigual e injusto, ele arrastou espontaneamente para os espaços do cemitério
Jardim da Colina, em São Bernardo do Campo, uma multidão calculada em cinco mil
pessoas. Ali, no recinto onde jazia o corpo de Arthur, as armas eram alegorias
desnecessárias. Vá lá que no seu comboio se justificassem, para dar-lhe
“segurança”, mas ali? Onde só havia a família e sua perda?
A
multidão foi lá, não para ver “um larápio posando de coitado”, como descreveu o
homem de aço, Eduardo Bolsonaro. (Sim, homem. Vamos parar de transformá-los em
“meninos”). Esses milhares de cidadãos foram, isto sim, demonstrar a
solidariedade e o amor que a “famíglia” que chegou ao Planalto desconhece,
porque “mito” o povo constrói e escolhe, não é forjado nas redes sociais.
Os
Bolsonaros podem ter chegado lá pelo voto, mas estão impondo ao país o mesmo
terror da ditadura, que conteve, pelas armas, as lágrimas de D. Avelina. Só não
puderam conter a onda de amor e conforto vindos do pátio do cemitério. Porque a
força desses sentimentos desconhece o poder das armas.
Publicado
originalmente no portal O Cafezinho
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