A reportagem da DW Brasil apurou Interação com populações
indígenas é delicada (Foto:
Rodolfo Oliveira)
A médica de família Marina Abreu admite que não conhecia a real complexidade do Brasil até começar a trabalhar como tutora de coordenadores do programa Mais Médicos. No Norte do país, ela conheceu locais que nunca tinham recebido um médico, aonde só se pode chegar após longas viagens em barcos com furos e sem assentos. Ela se emociona ao falar sobre a situação das comunidades que voltaram a ficar sem atendimento após a saída dos profissionais cubanos no último mês.
“O
programa vinha avançando e tinha passado da fase de novidade pela chegada dos
médicos. Havia projetos em andamento e uma forte adesão aos tratamentos pela
população, que criou vínculos com os profissionais. Estavam sendo feitos
procedimentos como a colocação de DIU, que é simples, mas não era feito antes
por uma série de limitações. O médico já conhecia aquela população e conseguia
fazer um trabalho específico.”
Visando
à reposição dos profissionais cubanos, o governo brasileiro abriu um edital
para os médicos interessados em participar do programa. Na última sexta-feira
(14/12), acabaria o prazo para que os 8.411 inscritos se apresentassem nos
novos postos de trabalho. Entretanto, 2.520 (cerca de 30%) não compareceram. A
situação levou o Ministério da Saúde a prorrogar para a próxima terça-feira a
data limite para início das atividades.
Outras
106 vagas do edital sequer tiveram interessados. Elas correspondem a 31
localidades, sendo 23 municípios do Amazonas, Pará, Piauí e Rondônia, além de
oito Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), unidades de
responsabilidade sanitária federal correspondentes a uma ou mais terras
indígenas.
Marina
trabalhou até fevereiro deste ano como supervisora de DSEIs no município de
Marechal Thaumaturgo, no Acre. Há voos comerciais duas vezes por semana para
lá, num avião que comporta de seis a oito pessoas. A alternativa é a viagem de
barco, que dura oito horas.
“A
maioria dos barcos não tem cobertura ou assento para encostar as costas. É bem
precário e toma tempo. No Norte do Brasil, o clima define muito o que dá para
fazer. Se chove muito, o rio fica cheio demais e se torna perigoso, pois a
correnteza é forte e descem troncos e árvores inteiras que se soltaram. Quando
chove pouco, o motor do barco não circula, e aí o barco pode virar porque o rio
está barrento. A logística era difícil, complicada, e dá uma ideia de como é
complexo fazer o atendimento em áreas indígenas.”
Como
supervisora, Marina recebia relatos de situações em que não fora possível
transportar pacientes para uma cidade maior, com melhor estrutura. Se fosse
necessário, os profissionais realizavam partos e suturas, pois não haveria
tempo de chegar a um local com condições mais adequadas. Além dessa adequação,
o trabalho nas DSEIs também demanda uma compreensão dos costumes da comunidade.
“Estávamos
levando a medicina do homem branco para uma área indígena, e isso traz
conflitos de medicação. A ideia não era impor a medicina do homem branco, e sim
contribuir e colaborar com o que eles já praticam na medicina deles. No caso de
etnias com pajés, o médico só entrava na aldeia com autorização dele. Há grupos
que não têm o costume de ter banheiro, outras que não têm construções. O médico
se adaptava àquilo e fazia o trabalho de orientação, principalmente. Quando
necessário, fazia intervenção mesmo, com tratamento medicamentoso, sempre com
consentimento ou de forma compartilhada com os pajés e demais lideranças.”
As
áreas contempladas pelo Mais Médicos na região Norte apresentam um perfil
populacional heterogêneo. Além dos povos indígenas, há ribeirinhos, quilombolas
e também muitas comunidades de agricultores. No sul do Pará, está localizada a
comunidade Vila Estrela, no município de Cumaru do Norte, onde trabalha o
enfermeiro Valdir dos Reis. Ele conta que a população local está desassistida
desde a saída do médico cubano que lá estava.
“O
doutor Humberto García está fazendo muita falta. Nossa unidade funciona de 7h
às 11h e de 14h às 17h. Ele cumpria rigorosamente os horários, o que
infelizmente não se via entre os brasileiros que passaram por aqui. Nós ficamos
de sobreaviso para qualquer eventualidade, qualquer emergência que surgir no
período noturno e finais de semana também. A população não precisava mais ir
para outras cidades para fazer esse tipo de atendimento, porque aqui tinha.”
Com
a partida do profissional cubano, Valdir só consegue prestar os atendimentos
primários e encaminhar os pacientes para o hospital mais próximo, que fica a
120 quilômetros de distância, sendo 80 quilômetros em estrada de terra. A
comunidade conta com uma ambulância antiga, desgastada e pouco confortável.
Mesmo serviços mais básicos, como atestados e pedidos de exames, não vêm mais
sendo oferecidos.
No
edital do governo, foram abertas três vagas para o município de Cumaru do
Norte, sendo uma delas justamente na Vila Estrela. Elas haviam sido
preenchidas, entretanto os profissionais desistiram após conhecer a realidade
do local. Hoje, o Brasil tem cerca de 5 mil médicos especializados em Saúde da
Família, para atender a mais de 25 mil unidades de saúde. Marina Abreu, que estudou
Medicina em Cuba, destaca a valorização que essa especialidade recebe no país
caribenho.
“Antes
de fazer outra especialização, todos os médicos que se formam em Cuba precisam
fazer dois anos de residência em Saúde da Família. Além disso, o curso é
completamente voltado para a medicina de família e comunidade. A disciplina de
Medicina Geral e Integral é oferecida em todos os anos. Desde 2014 vem se
tentando no Brasil fazer com que essa área seja a principal disciplina do
curso, o que é feito desde sempre em Cuba.”
Além
de prorrogar o prazo de apresentação dos médicos inscritos no edital até a próxima
terça-feira, o Ministério da Saúde também estendeu a inscrição até este
domingo. Houve picos de instabilidade no site, causados pelo grande número de
acessos, o que pode ter ocasionado dificuldades no momento da inscrição.
Estrangeiros formados no exterior e sem registro no Brasil também podem
participar.
A
DW Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde para indagar se há um
planejamento específico da pasta para as áreas mais remotas que não vêm
atraindo interesse dos médicos brasileiros. Até o fechamento da reportagem, não
houve retorno.
Publicado
originalmente no portal Deutsche Welle
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