Imagem capturada do programa Roda Viva da TV Cultura |
O
jornalismo brasileiro sofreu um apagão na noite desta segunda-feira (25/06). Não
há outra forma de definir a tempestade de estupidez e machismo em que se
transformou o Roda Viva sob o comando de Ricardo Lessa.
O
que deveria ser ser uma sabatina com a pré-candidata à presidência Manuela
D’Ávila, do PCdoB, tornou-se a vitrine da malícia reacionária que domina a
nossa imprensa. Por uma hora, Manuela se viu cercada de jornalistas menos
interessados em seu projeto e mais em vê-la tropeçar nas perguntas-pegadinha
normalmente direcionadas à esquerda brasileira. Não a levaram a sério.
Interromperam-na centenas de vezes.
Foi
o equivalente midiático de um fuzilamento, ao vivo e em cores. No pelotão,
estavam o próprio Lessa (mediador), Vera Magalhães (Estadão/Jovem Pan), Letícia
Casado (Folha), João Gabriel de Lima (Exame), Joel Pinheiro da Fonseca
(não-jornalista do Insper), e Frederico d’Avila (diretor da Sociedade Rural
Brasileira) – uma composição questionável, no melhor dos casos, por representar
somente tons do conservadorismo nacional.
Mas
talvez, sob o comando de um profissional competente, esse consórcio de
oponentes apresentasse à Manuela a chance de confrontar os preconceitos que a
impedem de crescer como candidata. Numa realidade em que o mediador do Roda
Viva fosse Heródoto Barbeiro ou Paulo Markun, as perguntas teriam chance de
serem respondidas, e não seriam transformadas em armadilhas para render
manchetes nas redes sociais.
A
maior vítima da hostilidade desta noite não foi Manuela D’Ávila, mas o próprio
Roda Viva, e com ele o departamento jornalístico da TV Cultura.
Para
que serve uma entrevista na qual o único objetivo é desestabilizar o
entrevistado? Estariam transmitindo de algum porão do DOPS? O grau de desleixo
foi tamanho que o próprio mediador pôs-se a rir sarcasticamente de sua
convidada quando desistiu de provocá-la. Repetiu 5 vezes a mesma pergunta:
“Você considera Lula inocente?”. Em todas ouviu a mesma coisa, e não a deixou
terminar.
Essas
foram duas tendências inescapáveis, inclusive: a obsessão por Lula, e o
silenciamento sistemático de Manuela no meio de suas falas. O terceiro bloco,
pior de todos eles, foi quase todo dedicado ao ex-presidente, e uniu os 6 da
bancada em um coro de acusações sem o menor auto-controle. A determinada
altura, Manuela disparou atônita: “Vocês gostam de falar mais do que eu”. Por
isso, foi chamada de “advogada do Lula”. Foi o momento mais vulgar. A
entrevista adquiriu ares de Inquisição, como se quisessem extrair dela a
confissão que não conseguiram do líder do PT. Como se quisessem transferir a
ela o peso de suas acusações.
Tentaram
também colocar palavras em sua boca. A ela foi perguntado nada menos que três
vezes se desistiria de sua candidatura, apesar de negar com firmeza. Machismo
exemplar, sob um fino véu investigativo. Criaram paralelos impossíveis entre
sua candidatura e os governos de Stalin e Mussolini, ditadores mortos há mais
de 60 anos, ancorados em bordões de WhatsApp que deixariam qualquer tio do pavê
orgulhoso. Em dois diferentes momentos, Frederico D’Ávila, que participa da
campanha de Jair Bolsonaro, tomou minutos para falar da “vida miserável na
União Soviética”, e finalmente desaguou na mãe de todas as falácias: “o
fascismo é de esquerda”.
Nenhum
membro da bancada foi melhor. Envergonharam o ofício do jornalismo ao basearem
suas perguntas em leituras ignorantes e fake news encontradas em redes sociais.
O menino Joel, desesperado, acusou-a de criar “discurso de ódio” por criticar a
nave-mãe de todos os discursos de ódio, o Movimento Brasil Livre. Minutos
antes, havia acusado Manuela de mentir sobre estatísticas que ele mesmo
desconhecia. Em outro momento, Frederico tentou desandar uma resposta sobre
feminismo para um bate-boca sobre castração química. Vera Magalhães encarnou a
ignorância de seus leitores depois de pedir colaborações no Twitter.
Nenhum
jornalista é obrigado a aderir a uma ou outra ideologia, mas espera-se do mais
medíocre que saiba se portar diante de uma câmera. Que não precise perguntar:
“É machista elogiar sua beleza quando estamos discutindo política?”, como fez
Ricardo Lessa. O nível foi este: abismal.
Manuela
D’Ávila sai gigante do programa, após delimitar seu espaço em meio a um inferno
de desonestidade intelectual. Já sobre a TV Cultura, pode-se dizer o contrário.
Se os próprios jornalistas perderam a capacidade de pensar com coerência, que
esperança temos de um debate civilizado até outubro? Este Roda Viva foi o
retrato da ruína de nossa profissão.
Publicada originalmente no portal Revista Fórum
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