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12 de maio de 2018

Os porões e os palácios da ditadura militar por Henrique Araújo

Os generais que viraram presidentes do Brasil no período da Ditadura Militar 
A esta altura, dispensável repetir que o memorando da CIA descoberto e divulgado pelo professor da FGV Matias Spektor na última quinta-feira (10/05), tem alto valor histórico. É um documento cujo conteúdo obriga a repensar a ditadura militar e a enterrar de vez qualquer hipótese de “ditabranda”, por delirante que seja. Joga luz sobre a participação dos presidentes dos “anos de chumbo” na máquina de morte do regime. E ajuda, com atraso de muitas décadas, a repor a verdade sobre os assassinatos e desaparecimentos no curso de 25 anos, tempo durante o qual cinco generais se sucederam no comando do País.

A principal revelação dos papéis da CIA, porém, é outra: antes, a versão oficial, ainda que enxovalhasse a verdade histórica, era de que agentes fora de controle atuavam para matar opositores ao governo nos porões dos palácios. Faziam isso à revelia de ordens superiores, agindo por conta própria e transformando lugares como o DOI-Codi e a Casa Azul em espaços de tortura de membros de organizações de esquerda que se opunham à tomada de poder pelos militares e à escalada de censura, mas também de cidadãos sem qualquer vínculo com a luta armada.

Ao narrar encontros entre Ernesto Geisel (1974-79) e outros militares de alta patente, como o general Milton Tavares de Souza, então diretor do Centro de Informações do Exército (CIE), o ofício atesta, contudo, que o assassinato era uma política de Estado levada a cabo com a expressa anuência das autoridades máximas brasileiras.

Mais que isso: o emprego de “métodos extralegais”, conforme o eufemismo registrado no memorando, era de conhecimento da cúpula do Exército desde o governo de Emílio Médici (1969-74), renovado depois pelo recém-empossado Geisel e em seguida mantido por João Baptista Figueiredo (1979-85). Ou seja, havia uma cadeia de decisões a qual os assassinatos eram submetidos sistematicamente e admitidos como ferramenta política contra os adversários.

Resta ainda um último aspecto importante: a estatística referida por Milton Tavares nessa conversa e apresentada a Geisel — 104 assassinatos políticos no ano anterior, 1973 (o documento do governo americano é de 1974). O dado, um número preciso de vítimas do regime, contrasta com as explicações usuais que vêm sendo oferecidas por membros do Exército segundo as quais as execuções não ocorriam às largas, mas pontualmente, articuladas por subalternos sem o aval dos presidentes. Queriam fazer crer que os assassinatos eram parte de um esquema mambembe de proteção da autonomia nacional contra investidas de entidades comunistas. Uma farsa, como se vê.

Chocantes, as revelações de agora desmontam essa hipótese e sugerem que os militares não somente estavam na chefia dessa engrenagem criminosa, como também organizavam a sua contabilidade com acurácia: não eram 100 ou 90 ou 50. Eram 104 os mortos pela ditadura apenas em 1973, sob o governo Médici. Qualquer semelhança com a fria burocracia por trás do extermínio de judeus pela Alemanha nazista não terá sido mera coincidência.

Em comum, tinham o controle rigoroso dos seus alvos e o uso de métodos a fim de se livrar deles do modo mais higiênico possível — lá, nas caldeiras e câmaras de gás; aqui, nos desaparecimentos e corpos “suicidados”.Difícil imaginar, portanto, que nenhum documento da ditadura haja sobrevivido, que as autoridades brasileiras tenham se desfeito de todas as provas desses crimes e, de lá pra cá, não tenha restado nada que possa corroborar o que o trabalho do Departamento de Estado norte-americano expõe agora.

Como registro histórico, o memorando é altamente confiável. Foi produzido pelo então diretor da CIA, William Colby, e transmitido ao secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. É, no entanto, apenas uma pequena parte de nossa História recente, sobre a qual o País ainda precisa se debruçar se quiser superar de fato o trauma que foram os anos sob a batuta dos generais. Um primeiro passo talvez fosse reabrir a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e revogar a Lei da Anistia, punindo criminosos e apontando responsabilidades. Revisitar a ferida de maneira a cicatrizá-la em definitivo, e não recalcá-lo sob a desculpa de que os anos se passaram e o País agora é outro. As máculas não se curam se a injustiça permanece.

Do contrário, estaremos sempre à mercê dos fantasmas do autoritarismo, que, mesmo passado tanto tempo, ainda assustam o Brasil. Na última sexta-feira, um dos principais candidatos à Presidência da República, segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, comparou a postura de Geisel à de uma mãe que aplica palmadas a um filho desobediente e depois se arrepende.

Finalmente, há esse saudosismo de um Brasil sob o regime militar. O memorando da CIA, mesmo vindo a público tardiamente, ajuda a dar forma a esse hiato democrático entre 1964 e 1985 e lhe empresta contornos mais precisos: nele, o País que vemos é um pântano no qual os palácios e os porões se confundem.

Publicado originalmente no portal O Povo Online


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