Páginas

10 de abril de 2018

Tribunais condenam Lula, mas a História o absolverá

Sociólogo Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do  Observatório Permanente da Justiça (Foto: Divulgação)
O princípio da independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes fácticos, nacionais ou internacionais. O reforço das condições de efectivação daqueles princípios dá-se através de modelos de governação do judiciário com ampla autonomia administrativa e financeira. Mas, numa sociedade democrática, esse reforço não pode resvalar para um poder selectivo e totalitário, sem fiscalização e sem qualquer sistema de contrapesos.

O processo Lula da Silva evidencia um judiciário em que tal resvalamento está em curso. Eis dois exemplos. É clara a disjunção entre o activismo judiciário contra Lula da Silva – célere, eficaz e implacável na ação (Sérgio Moro decretou a prisão de Lula escassos minutos após ser notificado da decisão de indeferimento do habeas corpus, do qual ainda era possível recorrer, e desde a denúncia à execução da pena decorreram menos de dois anos) – e a lentidão da ação judicial contra Michel Temer e outros políticos da direita brasileira. E não pode colher o argumento de que essa inação foi bloqueada por manobras do poder político porque não se conhece igual ativismo do judiciário na denúncia dessas manobras e em procurar ultrapassá-las.

O segundo é a restrição totalitária de direitos e liberdades constitucionalmente consagradas. Num Estado de direito democrático, os tribunais têm de ser espaços de aprofundamento de direitos. Ora, o que se assiste no Brasil é precisamente o contrário. A Constituição brasileira determina que ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, isto é, até que se esgotem todas as possibilidades de recurso.

A Constituição Portuguesa tem uma norma semelhante, e não se imagina que o Tribunal Constitucional português viesse determinar que uma pessoa fosse presa com o seu processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça. Ora, foi isso mesmo o que a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro fez: restringiu direitos e liberdades constitucionais ao determinar que, mesmo não tendo o processo transitado em julgado, Lula da Silva poderia começar a cumprir pena.

Qual a legitimidade social e política do poder judicial para restringir direitos e liberdades fundamentais constitucionalmente consagrados? Como pode um cidadão ou uma sociedade ficar à mercê de um poder que diz ter razões legais que a lei desconhece? Que confiança pode merecer um sistema judicial que cede a pressões militares que ameaçam com um golpe se a decisão não for a que preferem, ou a pressões estrangeiras, como as que estão documentadas de interferência do Departamento de Justiça e do FBI dos EUA no sentido de agilizar a condenação e executar a prisão de Lula?

Falta de garantias do processo criminal

O debate mediático em torno da prisão de Lula enfatiza o facto de o processo ter sido apreciado e julgado por um tribunal de segunda instância que não só confirmou a sua condenação como ainda agravou a pena. Este agravamento obrigaria a uma justificação adicional de culpabilidade. Infelizmente, a hegemonia ideológica de direita que domina o espaço midiático não permite um debate juridicamente sério a este respeito. Se tal fosse possível, compreender-se-ia quão importante é questionar as provas materiais, as provas directas dos factos em que assentou a acusação e a condenação.

Ora essas provas não existem no processo. A acusação e a condenação a 12 anos de prisão de Lula da Silva funda-se, sobretudo, em informações obtidas através de acordos de delação premiada e em presunções. Acresce que as condições de recolha e de validação da prova dificilmente são escrutináveis, dado que quem preside à investigação e valida as provas é quem julga em primeira instância, ao contrário do que, por exemplo, acontece em Portugal, onde o juiz que intervém na fase de investigação não pode julgar o caso, permitindo, assim, um verdadeiro escrutínio da prova. O domínio do processo, na fase de investigação e de julgamento, por um juiz confere a este um poder susceptível de manipulação e de instrumentalização política. Compreende-se a magnitude do perigo para a sociedade e para o regime político no caso de este poder não se autocontrolar.

Instrumentalização da luta contra a corrupção

O debate sobre o Caso Lula protagonizado por um sector do judiciário polariza o combate contra a corrupção, colocando de um lado os actores judiciais do processo Lava Jato, a eles colando o combate intransigente contra a corrupção, e do outro todos aqueles que questionam métodos de investigação, atropelos aos direitos e garantias constitucionais, deficiências da prova, atitudes totalitárias do judiciário, selectividade e politização da justiça.

Essa polarização é instrumental e visa ocultar justamente atropelos vários do judiciário, quer quando age quer quando se recusa a agir. O roteiro mediático da demonização do PT é tão obsessivo quanto grotesco. Consiste na seguinte equação: corrupção-igual-a-Lula-igual-a-PT. Quando se sabe que a corrupção é endémica, atinge todo o Congresso e supostamente o actual Presidente da República.

O Estado de São Paulo de 7 de Abril é paradigmático a este respeito. Conclui o roteiro com a seguinte diatribe: “a exemplo do que aconteceu com Al Capone, o célebre gângster americano que foi preso não em razão de suas inúmeras atividades criminosas, mas sim por sonegação de impostos, o caso do triplex, que rendeu a ordem de prisão contra Lula, está muito longe de resumir o papel do ex-presidente no petrolão”.

Esta narrativa omite o mais decisivo: no caso de Al Capone, os tribunais provaram de fato a sonegação dos impostos, enquanto, no caso de Lula da Silva, os tribunais não provaram a aquisição do apartamento. Por incrível que pareça, da leitura das sentenças tem de concluir-se que a suposta prova é mera presunção e convicção dos magistrados. A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na evidente desnecessidade de provar.

Os democratas e os muitos magistrados brasileiros que com probidade cívica e profissional servem o sistema judicial sem se servirem dele têm uma tarefa exigente pela frente.

Como sair com dignidade deste pântano de atropelos com fachada legal? Que reforma do sistema judicial se impõe? Como organizar os magistrados dispostos a erguer trincheiras democráticas contra o alastramento viscoso de um fascismo jurídico-político de tipo novo? Como reformar o ensino do direito de modo a que perversidades jurídicas não se transformem, pela recorrência, em normalidades jurídicas? Como devem as magistraturas autodisciplinar-se internamente para que os coveiros da democracia deixem de ter emprego no sistema judicial?

A tarefa é exigente, mas contará com a solidariedade activa de todos aqueles que em todo o mundo têm os olhos postos no Brasil e se sentem envolvidos na mesma luta pela credibilidade do sistema judicial enquanto factor de democratização das sociedades.

Publicado originalmente no jornal português Público

Um comentário:

  1. Este site é protegido por reCAPTCHA. A Política de Privacidade e os Termos de Serviço do Google se aplicam.

    ResponderExcluir

A Administração do Blog de Altaneira recomenda:
Leia a postagem antes de comentar;
É livre a manifestação do pensamento desde que não abuse ou desvirtuem os objetivos do Blog.