Sociólogo Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do Observatório Permanente da Justiça (Foto: Divulgação) |
O
princípio da independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do
constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça
livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes
fácticos, nacionais ou internacionais. O reforço das condições de efectivação
daqueles princípios dá-se através de modelos de governação do judiciário com
ampla autonomia administrativa e financeira. Mas, numa sociedade democrática,
esse reforço não pode resvalar para um poder selectivo e totalitário, sem
fiscalização e sem qualquer sistema de contrapesos.
O
processo Lula da Silva evidencia um judiciário em que tal resvalamento está em
curso. Eis dois exemplos. É clara a disjunção entre o activismo judiciário
contra Lula da Silva – célere, eficaz e implacável na ação (Sérgio Moro
decretou a prisão de Lula escassos minutos após ser notificado da decisão de
indeferimento do habeas corpus, do qual ainda era possível recorrer, e desde a
denúncia à execução da pena decorreram menos de dois anos) – e a lentidão da
ação judicial contra Michel Temer e outros políticos da direita brasileira. E
não pode colher o argumento de que essa inação foi bloqueada por manobras do
poder político porque não se conhece igual ativismo do judiciário na denúncia dessas
manobras e em procurar ultrapassá-las.
O
segundo é a restrição totalitária de direitos e liberdades constitucionalmente
consagradas. Num Estado de direito democrático, os tribunais têm de ser espaços
de aprofundamento de direitos. Ora, o que se assiste no Brasil é precisamente o
contrário. A Constituição brasileira determina que ninguém será considerado
culpado até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, isto é, até que se
esgotem todas as possibilidades de recurso.
A
Constituição Portuguesa tem uma norma semelhante, e não se imagina que o
Tribunal Constitucional português viesse determinar que uma pessoa fosse presa
com o seu processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça. Ora, foi isso
mesmo o que a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro fez:
restringiu direitos e liberdades constitucionais ao determinar que, mesmo não
tendo o processo transitado em julgado, Lula da Silva poderia começar a cumprir
pena.
Qual
a legitimidade social e política do poder judicial para restringir direitos e
liberdades fundamentais constitucionalmente consagrados? Como pode um cidadão
ou uma sociedade ficar à mercê de um poder que diz ter razões legais que a lei
desconhece? Que confiança pode merecer um sistema judicial que cede a pressões
militares que ameaçam com um golpe se a decisão não for a que preferem, ou a
pressões estrangeiras, como as que estão documentadas de interferência do
Departamento de Justiça e do FBI dos EUA no sentido de agilizar a condenação e
executar a prisão de Lula?
Falta
de garantias do processo criminal
O
debate mediático em torno da prisão de Lula enfatiza o facto de o processo ter
sido apreciado e julgado por um tribunal de segunda instância que não só
confirmou a sua condenação como ainda agravou a pena. Este agravamento
obrigaria a uma justificação adicional de culpabilidade. Infelizmente, a
hegemonia ideológica de direita que domina o espaço midiático não permite um
debate juridicamente sério a este respeito. Se tal fosse possível, compreender-se-ia
quão importante é questionar as provas materiais, as provas directas dos factos
em que assentou a acusação e a condenação.
Ora
essas provas não existem no processo. A acusação e a condenação a 12 anos de
prisão de Lula da Silva funda-se, sobretudo, em informações obtidas através de
acordos de delação premiada e em presunções. Acresce que as condições de
recolha e de validação da prova dificilmente são escrutináveis, dado que quem
preside à investigação e valida as provas é quem julga em primeira instância,
ao contrário do que, por exemplo, acontece em Portugal, onde o juiz que
intervém na fase de investigação não pode julgar o caso, permitindo, assim, um
verdadeiro escrutínio da prova. O domínio do processo, na fase de investigação
e de julgamento, por um juiz confere a este um poder susceptível de manipulação
e de instrumentalização política. Compreende-se a magnitude do perigo para a
sociedade e para o regime político no caso de este poder não se autocontrolar.
Instrumentalização
da luta contra a corrupção
O
debate sobre o Caso Lula protagonizado por um sector do judiciário polariza o
combate contra a corrupção, colocando de um lado os actores judiciais do
processo Lava Jato, a eles colando o combate intransigente contra a corrupção,
e do outro todos aqueles que questionam métodos de investigação, atropelos aos
direitos e garantias constitucionais, deficiências da prova, atitudes
totalitárias do judiciário, selectividade e politização da justiça.
Essa
polarização é instrumental e visa ocultar justamente atropelos vários do
judiciário, quer quando age quer quando se recusa a agir. O roteiro mediático
da demonização do PT é tão obsessivo quanto grotesco. Consiste na seguinte
equação: corrupção-igual-a-Lula-igual-a-PT. Quando se sabe que a corrupção é
endémica, atinge todo o Congresso e supostamente o actual Presidente da
República.
O
Estado de São Paulo de 7 de Abril é paradigmático a este respeito. Conclui o
roteiro com a seguinte diatribe: “a exemplo do que aconteceu com Al Capone, o
célebre gângster americano que foi preso não em razão de suas inúmeras
atividades criminosas, mas sim por sonegação de impostos, o caso do triplex,
que rendeu a ordem de prisão contra Lula, está muito longe de resumir o papel
do ex-presidente no petrolão”.
Esta
narrativa omite o mais decisivo: no caso de Al Capone, os tribunais provaram de
fato a sonegação dos impostos, enquanto, no caso de Lula da Silva, os tribunais
não provaram a aquisição do apartamento. Por incrível que pareça, da leitura
das sentenças tem de concluir-se que a suposta prova é mera presunção e
convicção dos magistrados. A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha
anti-semitismo dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar
consiste na evidente desnecessidade de provar.
Os
democratas e os muitos magistrados brasileiros que com probidade cívica e
profissional servem o sistema judicial sem se servirem dele têm uma tarefa
exigente pela frente.
Como
sair com dignidade deste pântano de atropelos com fachada legal? Que reforma do
sistema judicial se impõe? Como organizar os magistrados dispostos a erguer
trincheiras democráticas contra o alastramento viscoso de um fascismo
jurídico-político de tipo novo? Como reformar o ensino do direito de modo a que
perversidades jurídicas não se transformem, pela recorrência, em normalidades
jurídicas? Como devem as magistraturas autodisciplinar-se internamente para que
os coveiros da democracia deixem de ter emprego no sistema judicial?
A
tarefa é exigente, mas contará com a solidariedade activa de todos aqueles que
em todo o mundo têm os olhos postos no Brasil e se sentem envolvidos na mesma
luta pela credibilidade do sistema judicial enquanto factor de democratização
das sociedades.
Publicado
originalmente no jornal português Público
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