No
Brasil, dentre o amplo espectro de pautas e temas abarcados pelos direitos
humanos, ancorados fundamentalmente na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, é apenas sobre os ativistas de um segmento desse conjunto que recai a
incompreensão de boa parte da sociedade; trata-se daqueles que lutam contra os
abusos cometidos por policiais e agentes do sistema de segurança pública em
geral, além das questões relacionadas ao sistema carcerário.
Carregam
pesado fardo pela estigmatização que sofrem; sobre eles recai a cotidianamente
vivenciada associação dos direitos humanos como defesa de bandidos; são
perseguidos por enunciados do tipo “direitos humanos para humanos direitos”,
“direitos dos manos”, “bandido bom é bandido morto”, “por que vocês não visitam
as famílias das vítimas?”, dentre outros, proferidos não só por agentes da
segurança pública, mas também pela maioria da população, inclusive por pessoas
de elevado nível de instrução.
Como
as pessoas que sofrem essas violações são vistas como criminosas (embora nem
sempre o sejam), e geralmente moradores pobres das periferias das cidades,
parcela significativa da sociedade não se conforma que possam ter direitos,
como está na Constituição; acreditam, inclusive, que devam ser torturadas e
executadas.
Como
consequência, brutal carga de ódio recai sobre os ativistas que lutam contra
esses arbítrios, como se tivessem que expiar pelos males da sociedade. Isso não
acontece com ativistas das demais pautas no âmbito dos direitos humanos (por
ex. feministas, LGBT, indígenas, racismo, saúde, educação, moradia, trabalho
etc.), que enfrentam outras agruras e perseguições.
O
que se vê na sociedade brasileira é uma leitura dos direitos humanos fora de
sua concepção jus naturalista elementar, baseada na Declaração Universal e
incorporada na Constituição (artigos “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”),
que é a ideia de que qualquer ser humano, seja quem for, é portador de todos os
direitos humanos[3], sem qualquer hierarquização (princípios da
inalienabilidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos).
O
preocupante, e com todos os riscos para uma sociedade que se quer democrática,
é que é justamente o contrário disso que pensa parcela significativa da
população brasileira.
Essa
peculiar concepção mira a ação dos indivíduos (“mas, o que ele fez?”) e não o
indivíduo em si, portador de direitos inalienáveis, pelo simples fato de ser
humano.
O
que aconteceu com o país para se chegar a essa situação?
Como
se difundiu uma peculiar concepção de direitos humanos, invertida, restrita,
hierárquica, e que fundamentalmente persegue defensores de direitos humanos e
os iguala a defensores de bandidos? Como uma positividade discursiva de tal
potência pôde prosperar em nossa sociedade? Como se operou essa “associação
negativa” em relação a um grupo de ativistas dentro de um todo maior de atores
sociais?
Entendo
que as respostas a essas questões podem ser encontradas no artigo “Direitos
Humanos ou “privilégios de bandidos”: desventuras da democratização
brasileira”, de autoria de Teresa Pires do Rio Caldeira, por meio da leitura
dos acontecimentos de um período crucial de nossa história: a segunda metade
dos 1970 e a primeira dos 1980.
A
autora lembra que na segunda metade dos 1970 dois movimentos emergiram na
sociedade brasileira: a luta pela anistia aos presos políticos da ditadura,
assim como as violações de direitos decorrentes dessa condição, e os chamados
movimentos sociais, sobretudo nas periferias das grandes cidades, baseados nas
lutas sindicais, habitação, saúde, educação, carestia etc., chamados também de
direitos coletivos (na verdade, a consolidação do segundo tipo de movimento se
deu nos anos 1980).
Caldeira
(1991) aponta que a luta pelas violações de direitos de prisioneiros comuns e
nas abordagens policiais etc., vem no bojo desses movimentos, como um
alargamento do catálogo de direitos no país.
Interessante
perceber que parcela dos ativistas que vão atuar nessa luta são os mesmos que
atuaram a favor dos presos políticos, mas se imaginavam que seria apenas mudar
o alvo dos sujeitos violados, se enganaram; as dificuldades e diferenças foram
enormes.
A
recepção da população em geral em relação à defesa de presos comuns foi
totalmente diferente daquela dos presos políticos. Por quê?
De
acordo com a autora (Caldeira, 1991), para a maioria da sociedade, se o crime
cometido pelo preso político era discutível (e muitas vezes este provinha de
famílias de classe média e até ricas), quando se trata do comum, não. Defender
essas pessoas ultrapassou algum limiar intolerável, não assimilado pela maioria
da população, mesmo que estivessem sofrendo violações, de acordo com a lei.
Coisa que não aconteceu, na verdade, com os movimentos sociais da época, embora
já sofressem ataques de setores conservadores da sociedade.
Então,
a pergunta que deve ser feita é: por que essa recepção foi tão diferente?
A
autora (Caldeira, 1991) lembra o papel determinante de parte da mídia como
importante veiculadora de um discurso (“defender essas pessoas é defender
bandidos”, “não se deve gastar dinheiro público com eles” etc. quando não se
chegava a pedir a violência e até a morte) associado, em geral, a ideias de
impunidade, além de exageros nas narrativas (impressão do perigo constante,
sensação de medo e insegurança), ideias mentirosas sobre as condições
carcerárias etc.
Assim,
programas de TV, e sobretudo de rádio (por ex. o de Afanasio Jazadji),e jornais
impressos (até mesmo O Estado de S. Paulo, em algumas edições), além das falas
de autoridades policiais (por ex. o Coronel Erasmo Dias) atuaram como
importantes operadores (numa alusão, de minha responsabilidade, à abordagem
discursiva de Michel Foucault; a legitimidade de quem fala) desse discurso, a
martelar a cabeça das pessoas diariamente.
A
sociedade “comprou” esse discurso e sua força é atestada pelo sucesso das duas
figuras mencionadas em pleitos legislativos, como candidatos mais votados.
Esses
discursos, lembra a autora (Caldeira, 1991), constantemente atacavam o governo,
que tinha aceito o desafio de melhorar as condições carcerárias, dialogar com
prisioneiros e sobretudo tentar alterar a forma de atuação das polícias (não é
à toa que muitas dessas falas contra os direitos humanos venham de policiais),
herdeiras da atuação no contexto ditatorial (lembremos que o Secretário da
Justiça do Governo de São Paulo, José Carlos Dias, era um ativista de direitos
humanos).
Os
operadores desse discurso associaram essas condutas ao aumento da violência, da
criminalidade, inclusive como efeitos indesejáveis da democratização da
sociedade (a ideia de que a mudança está piorando a sociedade…).
Porém,
o aspecto crucial, abordado pela autora (Caldeira, 1991), é a ideia, recorrente
nesses discursos, do privilégio. A sua tese aponta que a veiculação discursiva
levada a cabo por esses operadores foi a de que lutar pelos direitos dessas
pessoas é dar privilégios a bandidos, gastar com recursos pagos pelos cidadãos
(a ideia de que defender bandidos é luxo), além de alusões à impunidade.
Como
decorrência, se observa o desprestígio dos direitos civis (liberdade
individuais) em relação aos direitos políticos e sociais que foi se
disseminando na sociedade, como se vê até hoje. Assim, ”Uma vez feita a
associação direitos humanos = privilégio para bandidos, foi fácil destruir a
legitimidade dos direitos que estavam sendo reivindicados, e dos seus
defensores, tratados como “protetores de bandidos”.
Então,
por que esses operadores vomitaram esse discurso tão vigoroso contra
determinados atores dos direitos humanos?
A
tese da autora (Caldeira, 1991) é a de que se tratou de uma tentativa de
resistência contra as mudanças que se estavam operando (ou se tentando) na
sociedade, em várias áreas, pressões e movimentos. Entendo que a seguinte
colocação é bastante elucidativa em relação à essência do processo:
“As
falas sobre a violência e a insegurança sugerem uma preocupação com o
rompimento de um equilíbrio, com a mudança de lugares sociais e, portanto, de
privilégios. Não é difícil entrever por trás do discurso contra os direitos
humanos e sobre a insegurança gerada pelo crime o delineamento de um
diagnóstico de que tudo está mudando para pior, de que as pessoas já não se
comportam como o esperado, que pobres querem direitos (privilégios, é bom
lembrar) e, supremo abuso, prova de total desordem, quer se dar até direitos
para bandidos. Pode-se perguntar, contudo, se uma das coisas que se pretendia
obter com a exploração desse “absurdo” não seria a afirmação dos privilégios
daqueles que articulavam o discurso”.
Quer
dizer, justamente a ideia de privilégios a bandidos, usada no discurso contra
os direitos humanos, tinha como objetivo conter a perda de privilégios de
alguns atores sociais, que poderiam ocorrer com as mudanças na sociedade.
Independentemente
dos argumentos da autora (Caldeira, 1991), observa-se que o discurso contra os
direitos humanos foi ganhando força e se consolidou, sobretudo na década dos
1990, sendo usado por vários atores sociais, em diferentes contextos, com
diversos enunciados, mas mantendo sua matriz fundante, sem rupturas e
descontinuidades, com um vigor e aceitação impressionantes, como uma prática de
nossa sociedade que causa espanto a muitos estrangeiros.
Prova
desse vigor foi a recepção da atuação policial pela sociedade em alguns
eventos, tais como o Massacre do Carandiru (1992), chacinas da Candelária e
Vigário Geral (ambas em 1993), dentre outros, em que se poderia imaginar o
questionamento e indignação contra essa atuação; contrariamente, receberam os
aplausos de parcela significativa da população.
Lembremos,
aliás, que o Cel. Ubiratan Guimarães, responsável pela invasão no Carandiru, se
elegeu com largo número de votos, usando a cédula n. 111 (em alusão ao número
de mortos no massacre).
Publicado
originalmente no portal Justificando
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