Ato
de mulheres no 8 de março de 2017, em Brasília (Foto: Marcelo Camargo)
Celebrar é fazer memória. As celebrações nos conectam com um acontecimento significativo e transformador na história de alguém ou de um grupo social. As sociedades humanas são extremamente celebrantes, e esse é um componente fundamental das religiões.
Não
celebramos apenas coisas alegres, como um nascimento, uma união, mas também a
dor, o luto, o sofrimento. Um exemplo para nós cristãs/ãos é a celebração da
paixão de Cristo, seu martírio e crucificação.
Também
celebramos a luta, fazendo memória a quem veio antes de nós e ajudou a traçar
os caminhos que hoje percorremos.
Foi
a luta das mulheres trabalhadoras na Rússia há 101 anos que deu origem a esta
celebração, assim como sua consolidação em 1922 do Dia Internacional das
Mulheres também foi resultante de luta. Neste dia (23 de fevereiro no
calendário juliano em vigor na Rússia até então) em 1917, as trabalhadoras
têxteis russas deflagraram uma greve contrariando as determinações da direção
do próprio partido.
Com
o lema “Pão, paz e terra” compassando suas marchas, a luta das mulheres foi o
combustível necessário para inflamar uma sociedade que sofria com a miséria, a
fome, longas jornadas e péssimas condições de trabalho, além da guerra que
aprofundava a crise econômica e social. Acabaram por sensibilizar também muitos
policiais, igualmente trabalhadores, que recusaram-se a executar a ordem para
reprimi-las.
É
neste terreno da luta que circunscreve nossa celebração do 8 de março. Fazemos
esta delimitação antes que discursos hipócritas rompam o silêncio confortável
frente às opressões cotidianas que sofremos, para equivocadamente parabenizar e
homenagear as mulheres, atribuindo a nós características universalizantes que
em nada correspondem à realidade ou contribuem para nossa dignidade. Um
silenciamento da diversidade abrigada sob a mesma categoria do ser/ tornar-se
mulher.
A
omissão desta história de luta que nos precede e das motivações que nos impelem
a continuá-la ainda hoje é uma maneira de calar a nossa voz, de fazer a nós e
as opressões que sofremos invisíveis e inaudíveis.
Também
hoje nos levantamos aqui contra as reformas trabalhista e da Previdência, que
impõem às mulheres trabalhadoras um aumento de seu trabalho e achatamento de
seu futuro.
Enfrentamos
o silêncio engajado do poder público que faz avançar em todas as esferas o
projeto neoliberal que expropria nossos corpos e territórios, sejam
quilombolas, ribeirinhos, indígenas, periféricos, encarcerados...
Silenciosas
e opressoras são as 7,5 horas semanais que as mulheres trabalham em média a
mais que os homens, quadro praticamente inalterado nos últimos 20 anos. Como
também silencioso e perverso é o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos
que segue sendo entendido e cobrado como uma responsabilidade exclusiva das
mulheres.
Opressoras
são as imposições morais que condenam e restringem a diversidade sexual e a
autonomia reprodutiva; que estabelece uma única conformação familiar como
“natural”; que legitimam e justificam as violências e violações de direitos
sofridas pelas mulheres.
Ensurdecedor
é o silêncio que oprime vindo de uma Igreja institucional frente aos abusos
contra mulheres e crianças cometidos por seus sacerdotes em todo o mundo. Assim
como é igualmente cruel o silenciamento forçado das vítimas diante do poder
religioso que acolhe e protege os abusadores que exercem o sacerdócio.
Este
mesmo sacerdócio que é negado às mulheres contrariando o próprio movimento de
libertação de Jesus Cristo que incluía mulheres e homens em um discipulado de
iguais. O poder, a hierarquia, as doutrinas e dogmas construídos em seu nome,
são desvios de Seu projeto e uma estratégia perversa de silenciar a capacidade
das mulheres de liderarem e tomarem decisões sobre não apenas sua vida, mas
também de sua comunidade religiosa e/ou política.
Uma
Igreja que silencia diante da morte de mulheres decorrente do aborto inseguro,
da violência misógina e do agravamento das condições materiais de subsistência
de milhares de famílias, que em sua maioria são “chefiadas” por mulheres é uma Igreja que compactua com essas perversidades.
O
conservadorismo moral e religioso que estende seus vigores contra os direitos
das mulheres, população LGBT e população negra, reafirma a função perversa da
trajetória de dominação e apagamento exercida pela igreja nos tempos de
colonização e que perduram até os dias de hoje.
São
incontáveis as desigualdades e opressões silenciadas que tornam o próprio
silêncio opressor. Contra estes silêncios não nos calamos. Como bem disse
Angela Davis na chamada para a greve internacional deste 8 de março: “Com todas
essas frentes de guerra abertas contra nós, não nos acovardamos. Nós devolvemos
com luta.” Essa é nossa maneira de celebrar, este é o nosso 8 de março.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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