Célia teve atuação marcante na virada eleitoral que levou Maria Luiza à Prefeitura de Fortaleza (Foto: Sara Maia) |
Célia pegou de cheio os anos de chumbo da ditadura militar. Partiu de Casa Branca (SP) para a capital paulista. Lá iniciou seu curso de Letras na Faculdade Sedes Sapientiae (PUC).
A queda do XXX Congresso da UNE (out/1968), trouxe-lhe enormes desafios. Após a prisão de mais de mil estudantes, ela enfrentou o momento mais difícil do movimento estudantil brasileiro. Isso lhe possibilitou uma preciosa experiência. Foi do Centro Acadêmico e do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Na reorganização do movimento estudantil, contribuiu para a realização do clandestino XXXI Congresso da UNE, que elegeu Honestino Guimarães seu presidente.
Soube fugir da perseguição política. Escapou da caçada do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Célia chegou ao Ceará na clandestinidade, no início de 1974. Aqui reencontrou seu companheiro Jorge Paiva. E encontrou-se com Rosa Fonsêca que saía da prisão e Maria Luiza que retornava do Exterior.
O nome de Célia Zanetti está inscrito na história do Ceará. Esteve nas principais lutas das favelas. Participou de inúmeras ocupações de terra. Teve atuação marcante na virada eleitoral que levou Maria Luiza à Prefeitura de Fortaleza e nos embates daí decorrentes. Lutou bravamente contra a violência sobre as mulheres, inclusive enfrentando o Sindicato do Crime no Cariri. Contribuiu para o dimensionamento, com base na crítica radical do valor-dissociação, da luta das mulheres por uma transformação profunda da sociedade atual. Indignava-se sempre com todas as formas de preconceito e concepções obscurantistas e conservadoras, seja em relação às mulheres, aos negros, índios, homossexuais, religiosos, judeus, ciganos e outros segmentos. Esteve sempre presente nas greves e ocupações dos trabalhadores(as), ao manifestar sua solidariedade sempre alertando acerca da diferença fundamental entre a luta imanente e a luta transcendente ao capital e suas categorias fundantes que se expressam no nosso existir e pensar.
Integrou o Movimento Feminino Pela Anistia, a União das Mulheres Cearenses, a União das Comunidades da Grande Fortaleza e Jornada de Luta Contra a Fome. Teve papel destacado que nas lutas em defesa do Cocó. Sua presença altiva, serena, corajosa e decidida no acampamento do Cocó ajudou a forjar na luta inúmeros jovens cearenses. Abraçou apaixonada e decididamente o Projeto do Sítio Brotando a Emancipação, que entra agora numa nova fase. Ocupava sempre as primeiras fileiras no enfrentamento contra a repressão. Sua energia ilimitada na batalha pela liberdade de Cesare Batistti é inesquecível. Sempre manifestava sua revolta e indignação contra as torturas, assassinatos, desaparecimentos e todas as formas de perseguição política a inúmeros companheiros e companheiras com quem atuou no período da ditadura.
Esteve na China, em 1995 na Conferência Mundial das Mulheres, em Pequim. No Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, participou de uma importante reunião com integrantes do movimento. Foi uma das mais expressivas organizadoras e participantes dos protestos no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no Mercosul e nas Jornadas de Junho e nos protestos na Copa do Mundo. Foi presença marcante nos Fóruns Sociais Mundiais, Rio%2b20, Cúpula dos Povos, onde pôde dar vazão às suas aptidões artísticas, coordenando nossos cortejos e performances teatrais.
Sua sensibilidade para com os desafios no plano teórico aflorou com entusiasmo quando da descoberta dos Grundrisse. Desde então, foi uma das mais esforçadas na realização de pesquisas, estudos e aprofundamentos teóricos que o grupo sempre promove. É inesquecível sua alegria desmedida quando lançamos o Manifesto Contra a Política, em 1999, que anunciava com bastante antecedência os desdobramentos que redundaram nos acontecimentos atuais. Da mesma forma ocupou posição destacada na organização do Seminário Teoria Crítica Radical, Superação do Capitalismo e Emancipação Humana, em 2000, quando trouxemos à Fortaleza Robert Kurz, Norbert Trenkle, Anselm Jappe, Moishe Postone e Dieter Heidemar.
Tal como a gata da fábula tcheca, identificava os que mudavam e não mudavam de cor. Com estes, buscou incansavelmente a união indispensável para a transformação da sociedade atual com sua descivilização, genocídio, ecocídio e barbárie.
Sempre nos lembrava do poeta que dizia que são muito fortes as coisas e como não somos as coisas nos revoltamos. A revolta consciente da Célia, sua ternura e desapego às coisas materiais e sua preocupação constante com o papel emancipatório das pessoas humanas nos abriram perspectivas para a suplantação do moderno sistema fetichista patriarcal produtor de mercadorias, o capitalismo.
Manter a Célia viva é, portanto, levar adiante, teórica e praticamente, seu compromisso com a ruptura com o sistema e construção da sociedade da emancipação humana e ambiental: a sociedade humanamente diversa e desfetichizada, socialmente igual e criativa, prazerosa no ócio produtivo, ecologicamente exuberante e bela, completamente livre.
Célia construiu um novo canto para os seres humanos e a natureza. Seu canto nos encanta para superarmos o ainda reinante desencanto.
Sua solidariedade e coragem incomensuráveis contribuíram para a gestação de um compromisso efetivo, teórico e prático, com a luta emancipatória.
O ar instigante e conspirativo da nossa cidade tem a poesia, o sorriso franco e aberto e o perfume de Célia. Sua alegria escancarada nos passeios com seu neto Benjamin, na Praça da Gentilândia/Benfica, embelezou definitivamente a melodia da Fortaleza emancipada!
Publicado originalmente no portal O Povo Online
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