Há
muito tempo a cidade do Rio de Janeiro não se via em tal situação. A
prefeitura cortou metade da verba das escolas de samba, não permitiu a
utilização do sambódromo para os ensaios técnicos, forneceu uma organização
pífia e os dirigentes e carnavalescos tiveram que se virar.
Também
queriam confinar os blocos de rua, restringir acessos e acabar com a farra. Os
inimigos do povo, do carnaval e da alegria estavam à solta.
Um
clima de insegurança instalou-se desde o primeiro dia de festa. Não havia
planejamento, policiamento, limpeza, iluminação, estrutura. Tudo era precário e
os sambistas e foliões, entregues à própria sorte, brincaram do jeito que deu,
mesmo com medo, apesar dos riscos.
Assim
que o corte da verba foi anunciado, as agremiações tiveram que rever seus
orçamentos.
Esse
episódio inspirou o enredo da Mangueira: “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu
brinco”. A crítica direta ao prefeito Marcelo Crivella rendeu à escola um
quinto lugar e o direito de retornar no desfile das campeãs. Crivella foi
representado numa alegoria como um “judas” enforcado e acusou a Mangueira de intolerância
religiosa. Logo ele, bispo da Igreja Universal, que já incitou e cometeu
inúmeras atrocidades contra as religiões de matrizes africanas em nome de
Jesus.
Outras
duas escolas protestaram através de seus enredos: Beija-flor de Nilópolis e
Paraíso do Tuiuti, respectivamente campeã e vice-campeã do Carnaval 2018.
A
Beija-flor veio com uma estética diferenciada, mais original do que luxuosa, e
arrebatou os jurados com o enredo “Monstro é aquele que não sabe amar – os
filhos abandonados da pátria que os pariu”. Corrupção, ódio, intolerância foram
criticadas a partir de uma correlação com a história de Frankenstein.
Um
campeonato incontestável e um desfile competente, mas que reproduziu uma série
de estigmas ao reafirmar, por exemplo, o lugar social do negro sem nenhuma
contestação contundente. Foi um protesto aceitável, produzido, ao que parece,
para não desagradar a emissora que transmitia o carnaval.
Foi
leve, apesar de reproduzir cenas fortes, pois não colocou o dedo na ferida e
não foi além do lugar-comum, daquilo que vocifera a classe média raivosa quando
diz que quer combater a corrupção mas nem se abala com a seletividade da
justiça brasileira.
Apesar
da intensa crítica do samba-enredo, o desfile não correspondeu, tornando-se
quase um retrato “coxinha”, cheio de estereótipos, feito pra agradar à Zona
Sul.
Quando
despontou na Marquês de Sapucaí “o quilombo da favela”, perguntando: “Meu Deus,
meu Deus, está extinta a escravidão?” já se via o prenúncio de um desfile
memorável. Enredos afro sempre geram grande expectativa, mas a Paraíso do
Tuiuti pegou o gancho da escravidão pra fazer uma crítica feroz, ácida e
indigesta pra muitos setores da sociedade brasileira.
Bateu
forte, sem dó, deixou na lona.
A
mesma pergunta que a Tuiuti nos fez 130 anos depois do fim da escravatura, a
Mangueira já havia feito no Carnaval de 1988, nos 100 anos da abolição.
Triste
é que essa pergunta continua atual e a resposta nós bem sabemos.
A
situação do País, com ameaças reais aos direitos trabalhistas, impingia nuances
mais densas às constatações que o povo mais pobre já anunciava, mas que a
Tuiuti mostrou para o mundo através da tela da Globo, que sempre fez questão de
escamotear a crise, constrangendo e calando seus comentaristas. Aliás, um
silêncio ensurdecedor diante de mais uma denúncia do golpe, exposta com a
clareza e a criatividade que só os grandes carnavalescos possuem.
O
desfile da Paraíso do Tuiuti tornou-se o segundo assunto mais comentado no
Twiter em todo o mundo. As redes sociais ferveram. Milhares de memes. O
silêncio e as bobagens ditas pelos comentaristas viraram piadas. E o povo
elegeu a grande campeã do Carnaval 2018.
Foi
tamanha repercussão que a própria Globo teve que se redimir e fazer uma
reportagem falando sobre o desfile, mas agora dando nome aos bois, ou seja, a
todos os criticados.
O
último carro da escola retratava as passeatas pelo impeachment da presidenta
Dilma. Os manifestantes, com suas camisetas da CBF, ganharam nariz de palhaço e
cordas de marionete, vinham montados no pato da Fiesp, batendo panelas e sendo
manipulados por mãos gigantes. Eram os “manifantoches”. No alto da alegoria, o
destaque central com a fantasia de “Vampiro Neoliberalista”, representava o
presidente ilegítimo Michel Temer.
Carteiras
de trabalho e a CLT rasgadas numa alusão à revogação da Lei Áurea.
A
“bondade cruel” dos senhores, que se livraram do fardo da escravidão ao criar a
ilusão da liberdade, sendo reinventada na redução de direitos e nas reformas
trabalhistas e da previdência. Não, não foi extinta a escravidão.
Os
movimentos de direita, revoltados com a crítica, tentaram derrubar as páginas
da Tuiuti nas redes sociais. A esquerda também quis surfar nessa onda e tentou
se apropriar do bem sucedido enredo, rasgando elogios à escola e replicando os
trechos favoráveis do desfile. Prevaleceu a soberania do samba, do quilombo, da
resistência.
“Não
sou escravo de nenhum senhor”, já dizia o lindo samba da Tuiuti.
Portanto,
a escola fez questão de demarcar seu território, seu lugar de fala, sua
autonomia. Ali, era o povo sofrido da favela, era o morro descendo, fazendo do
asfalto seu templo de revolução e vitória.
Era
a ancestralidade, do candomblé, da umbanda, das macumbas cariocas, naquela
comissão de frente que trazia o sangue, o suor e as lágrimas do povo negro.
Os
grilhões e o açoite, a redenção e a liberdade na força dos pretos-velhos. Era a
morte nos canaviais, nas fábricas, na construção civil. Era o genocídio e a dor
das mães que perderam seus filhos com um tiro da polícia.
“O
quilombo da favela”, “sentinela da libertação”, mostrou ao mundo a força do
povo. O chão da Sapucaí tremeu, e os poderosos, mais ainda. Naquele templo do
samba, projetado pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer, ficou provado que é
na rua, protestando, que se muda um país. Foi memorável, foi lindo, foi
histórico.
O
título é da Beija-flor, e não cabe contestação. Mas a glória é da Tuiuti.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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