Quando
terminei minha graduação, resolvi continuar estudando e iniciei minha rotina em
um laboratório computacional da USP. Décadas atrás, quando a internet ainda era
movida a carvão, ela já tinha o atrativo, para mim irresistível, de uma grande
quantidade de textos de ótima qualidade - além do pornô, é claro.
Ao
longo dos anos, minha formação escolar e acadêmica foi me fornecendo sólidos
conhecimentos em matemática e física que permitem enxergar grande parte do
funcionamento do universo. Mas foi navegando na web em um intervalo de estudos
que, pela primeira vez, o conhecimento adquirido em apenas algumas semanas
sacudiu a minha existência.
Não foi uma revelação nem um delírio místico, não
foi um acidente de carro nem uma doença ou um sonho. Foi o conhecimento que
alterou minha vida. Para melhor.
Mas
antes lhe contar sobre isso, advirto: se por ventura achar que o conhecimento
não é pra você e essa não é a melhor forma de mudar o mundo, existem muitas
pessoas dedicadas a promover boas causas, e essas causas sempre precisam de
financiamento. É o caso da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, por
exemplo, a única entidade no país que se dedica de fato a promover a laicidade
do Estado - com ações concretas, através do ativismo jurídico.
Os dados mostram claramente que financiar a religião não é a melhor das escolhas. Vivemos no país com mais católicos do mundo e com um mar de evangélicos, e vejam onde isso nos trouxe. Enquanto isso, no primeiro mundo as igrejas estão fechando e se vê os maiores índices de ateísmo do planeta. Não são os ateus que povoam os nossos presídios nem o noticiário dos escândalos de corrupção. Ou pedofilia. Mas voltemos ao conhecimento.
Os dados mostram claramente que financiar a religião não é a melhor das escolhas. Vivemos no país com mais católicos do mundo e com um mar de evangélicos, e vejam onde isso nos trouxe. Enquanto isso, no primeiro mundo as igrejas estão fechando e se vê os maiores índices de ateísmo do planeta. Não são os ateus que povoam os nossos presídios nem o noticiário dos escândalos de corrupção. Ou pedofilia. Mas voltemos ao conhecimento.
Muita
gente sabe que existem ilusões dos sentidos (as mais conhecidas são as de
ótica, mas existem outras), que são fenômenos que nos fazem perceber as coisas
erroneamente. Contudo, lendo sites como o insubstituível The Skeptic’s
Dictionary, percebi que também existem falácias e ilusões cognitivas, que são
fenômenos que nos fazem pensar nas coisas erroneamente. E as ilusões cognitivas
estão em todos os lugares. Na política, na medicina, na religião, nos
relacionamentos pessoais. Quer um exemplo? Uma das ilusões cognitivas mais
fortes e de maior impacto na história da humanidade é a de que o universo
inteiro gira em torno da Terra. Não se trata de uma ilusão de ótica. É apenas
um erro de pensamento, e um dos mais comuns: falta de imaginação ou de
disposição em procurar explicações alternativas para o mesmo fenômeno.
Não
é à toa que grande parte dos bons mágicos prefere chamar sua arte de
ilusionismo. Os impressionantes atos de escapismo, adivinhação, levitação,
surgimentos, desaparecimentos e todos os efeitos de violação das leis naturais
de uma apresentação de mágica são todos ilusões, quase sempre cognitivas. A
mulher que aparenta levitar, por exemplo, também não é uma ilusão de ótica.
Mais uma vez, é o resultado de nossa inabilidade em reconhecer explicações
alternativas. O fato de que a religião, assim como a mágica, também gira em
torno de eventos de violação de leis naturais, não é uma coincidência.
O
ilusionismo é essencialmente o uso deliberado do conhecimento dos truques que
nos fazem chegar às conclusões erradas. Com as crenças místico-religiosas e as
pseudomedicinas, é basicamente a mesma coisa. Com uma diferença: os mágicos que
preferem ser chamados de sacerdotes não necessariamente sabem que estão usando
truques. Como consequência, a plateia religiosa não é informada de que se
tratam de ilusões.
Existe
um universo inteiro de ilusões cognitivas, as mais variadas possíveis, mas as
que levam às falsas atribuições de causa são praticamente universais, e talvez
com as consequências mais nefastas. É o que justifica, por exemplo, tanto a
popularidade da astrologia como da homeopatia. O sucesso da primeira se baseia
no fato de que os crentes aceitam a causa da aparente precisão das leituras
astrológicas como “a posição dos astros no momento do meu nascimento influencia
determinantemente o meu futuro” ao invés de “leituras astrológicas de qualquer
signo parecem igualmente convincentes e precisas para todas as pessoas” (é o
chamado efeito Forer).
O sucesso da segunda se baseia no fato de que os crentes aceitam a causa “eu melhorei porque alguma coisa contida na água destilada 100,0000000000% pura que ingeri fez efeito” ao invés de “eu melhorei porque qualquer comprimido de farinha faria o mesmo efeito ou devido à regressão natural da doença” (é o chamado efeito placebo).
O sucesso da segunda se baseia no fato de que os crentes aceitam a causa “eu melhorei porque alguma coisa contida na água destilada 100,0000000000% pura que ingeri fez efeito” ao invés de “eu melhorei porque qualquer comprimido de farinha faria o mesmo efeito ou devido à regressão natural da doença” (é o chamado efeito placebo).
A
religião existe porque as pessoas aceitam “foi deus” ao invés de “foram as leis
naturais”, “foi a oração” ao invés de “foi o acaso” e “foi a novena” ao invés
de “foram séculos de conhecimento acumulado em medicina e dezenas de milhares
de reais em recursos humanos e tecnológicos, além do esforço coletivo de
organizar um vasto esquema de captação de recursos da sociedade para oferecer
serviços de saúde.”
Grande
parte da justificativa de existência do feminismo e do movimento negro é a
recusa em admitir mecanismos causais diferentes da discriminação pura e
simples. No primeiro, para explicar prevalências de gênero diferentes de 50%
nas escolhas profissionais e no segundo, para explicar dados sociais diferentes
da prevalência étnica na população.
A
segunda vez em que o conhecimento mudou minha vida drasticamente em algumas
semanas foi quando conheci o sofrimento animal que impomos a espécies de
animais diferentes da nossa. Essa é uma área em que a imensa parte das pessoas
têm um padrão duplo de comportamento: se um pato estiver tentando atravessar a
estrada com seus filhotes, o sujeito vai frear o carro, arriscar um acidente
grave e ainda ajudar os fofinhos a chegar do outro lado sãos e salvos. Mas esse
mesmo indivíduo não vê problema nenhum em chegar ao supermercado minutos depois
e pagar para que alguém meta a faca no pescoço de um frango, depois o depene,
esfole e esquarteje de maneira conveniente.
Qual
seria a reação do público se o sujeito postasse no face um vídeo em que pega o
pato da estrada e corta o seu pescoço? O desejo gastronômico mata 72 milhões de
mamíferos e 6 bilhões de aves a cada ano. Eu disse bilhões. Quase uma população
humana terrestre. Todos os anos. Só no Brasil. Que diferença faz uma degola na
estrada?
Olhar
para além da minha espécie me levou a profunda reflexão a respeito de como são
e de como devem ser os nossos padrões morais. Arthur Clarke notou que “talvez a
maior tragédia da história humana tenha sido o sequestro da moralidade pela
religião”, com o que concordo enfaticamente. E a causa é simples: esse
sequestro não apenas desvincula a moralidade do sofrimento humano como na maior
parte das vezes erradica qualquer preocupação com as demais espécies. Ser ateu
e seguir uma filosofia moral secular me faz atentar somente para o que importa:
sofrimento. Pensar assim clareia incrivelmente seu julgamento moral em todas as
questões, inclusive as tradicionalmente mais pantanosas como o aborto.
Dostoievski
disse que se deus não existe, então tudo é permitido. Mas é exatamente o contrário.
Quando se alega que existe um deus, isso cria padrões morais em que só importa
agradar as preferências desse amigo imaginário, quaisquer que sejam. O
sofrimento dos viventes se torna irrelevante. E assim tudo se permite:
mutilação genital feminina e masculina, cruzadas, perseguir e queimar hereges,
lançar aviões contra edifícios e homossexuais do alto de edifícios, discriminar
mulheres e descrentes, proibir camisinha, reprimir a sexualidade, impedir
divórcio e pesquisa científica…
Posso
dizer com orgulho que o conhecimento mudou minha vida. Mais de uma vez. Muito
poucas pessoas estão no local e no tempo certo para participar de mudanças
revolucionárias no seu sentido clássico, e poucas dessas mudanças são benignas.
Mas existe uma outra forma de mudar o mundo, que é superando o desconhecimento
e a nossa tendência à ilusão. Na era do conhecimento, a ignorância é quase uma
escolha.
Todo
problema complexo tem uma solução simples, que todo mundo pode entender, e
errada. Descobrir quais das soluções que adotamos são erradas tem o poder de
mudar o mundo. A fé não leva à verdade. De fato, quando uma proposição é
verdadeira e subsiste por méritos próprios, ela não precisa de fé. O casamento
indissolúvel com as crenças de fé é um convite ao casamento indissolúvel com o
erro. É só duvidando e eliminando nossos próprio erros de convicção (e sabemos
que eles sempre existem) que chegamos à verdade. Se a vida real tem semelhanças
com truques de mágica, o primeiro passo para não ser enganado é saber que
existem e entender como funcionam esses truques. Se não todos, ao menos algum.
Isso altera a sua condição de espectador ludibriado para agente consciente.
Com
esse conhecimento, podemos votar melhor, parar de nos devotar a danças da chuva
como orações, começar a julgar as pessoas pela força do seu caráter e não pela
data do seu nascimento, parar de desperdiçar dinheiro e arriscar a nossa saúde
e a dos nossos filhos com tratamentos médicos ineficazes, parar de acreditar em
amigos imaginários e, enfim, tratar melhor tanto outros humanos como os membros
de outras espécies. Não há maneira mais profunda de mudar o mundo do que essa.
Publicada
originalmente no portal UOL
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