Data:
21 de dezembro de 2016, começo oficial do verão brasileiro.
Fato: não bastasse
o calor desértico que nem mesmo três banhos por dia aliviavam, eu havia sido
antidemocraticamente eleito a assumir o mandato de destruidor de fantasias.
Missão: contar a minha filha do meio – 8 anos de idade à época – sobre a não
existência do Papai Noel.
Um ano depois, menina, falemos, de novo, sobre o
Natal. Desta vez, porém, não é o velhinho de barbas brancas o centro da
história, mas, sim, a megaempresa que o moldou para fazer das festas natalinas
um festejo de lucros para poucos: a Coca-Cola.
Você
está prestes a completar 10 anos, Bia. E preciso falar do assunto de forma mais
ampla. Porque, diferente da outra vez, é fundamental tentar tocar a sua
consciência sobre o quanto somos enganados por corporações empresariais que se
apropriam de lendas e bons afetos para vender mentiras. Muita gente no planeta
sofre com isso.
Tomemos
um exemplo e as consequências dele: em 1931, no inverno dos Estados Unidos, a
campanha publicitária da Coca foi batizada de "A sede não conhece estação
do ano”. É dela que surge o Papai Noel de roupa vermelha e preta, criado pelo
artista Haddon Sundblom. A propaganda colou. Em outros tempos e outras
culturas, personagens que faziam o papel do Noel eram vistos como “quase
santos” e, na maioria das vezes, representavam a generosidade, não o
consumismo. Isso se inverte a partir daquele ano e vira um problemão ao longo
do tempo.
Por
quê? Bem, pense no resultado da soma da data mais comercial do mundo, (o
Natal), com um símbolo de crença, praticamente um santo (Papai Noel), e o poder
econômico da companhia que mais vende bebidas açucaradas à humanidade? No
mínimo, espera-se uma explosão de consumo, não?
Pois
a bomba estourou e liberou outras explosões: a de doenças crônicas não
transmissíveis (diabetes, hipertensão, males cardíacos, obesidade mórbida,
cáries dentárias). Até com o câncer, o consumo excessivo de açúcar já foi
associado. Posição oficial do Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Brasil,
aponta 13 tipos de cânceres que podem ter origem na obesidade. Claro que não é só
a Coca que põe açúcar nos produtos, mas ela usa aos montes. E colabora para o
desenvolvimento de doenças, também aos montes.
Pior,
é que a coisa não para por aí. Vamos viajar e conversar sobre lugares e pessoas
que você provavelmente não conhece, mas que têm histórias e credibilidade para
falar sobre o “casamento” (ruim para nós) entre a Coca e o Natal?
Na
Inglaterra, a Public Health England, agência de saúde pública do país, mostrou,
em novembro, que as propagandas da Coca são voltadas a comunidades onde há mais
cáries e obesidade, principalmente entre crianças. O chefe do órgão, Duncan
Selbie, em entrevista ao jornal The Guardian, pediu que governos locais
proibissem a passagem da caravana natalina da megacorporação (aquela, dos
enormes caminhões vermelhos, com o Noel a bordo) pelas cidades do país.
"Nós
estamos vendo um número crescente de protestos contra o caminhão, tanto do
público como de parlamentares, profissionais de saúde e dentistas. A motivação
por trás disso (da carreata) não é levar a alegria do Natal, mas é uma tática
de marketing que não é boa para a saúde das crianças", diz Mary Fewtrell,
professora do Royal College de Pediatria e Saúde Infantil, também da
Inglaterra.
Uma
nota do porta-voz oficial da corporação naquela região do mundo defende o uso
dos caminhões: "O passeio de caminhão de Natal da Coca-Cola é um evento
anual único que oferece às pessoas uma escolha de amostras de 150 ml de
Coca-Cola Clássica, Coca-Cola Zero Açúcar ou Coca Diet. Duas das três opções
não são bebidas açucaradas".
Só
que as amostras grátis de 150 ml são entregues às crianças. E o que a posição
da empresa não revela é a existência de diversas pesquisas evidenciando que as
Cocas sem açúcar (mas cheias de adoçantes artificiais) também podem fazer muito
mal, inclusive aumentando os riscos de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e
demência.
Estamos
na Europa, ainda; Espanha. Trabalhadores demitidos pela Coca realizaram
“manifestações natalinas” na capital do país, Madri, no último dia 16 de
dezembro. O movimento “Coca-Cola em Luta” reúne 821 trabalhadores dispensados
em 2014, mas readmitidos após decisão judicial. Parte deles, porém, foi
colocada em um centro logístico e não na linha de produção, área em que
trabalhavam antes. Funcionários foram colocados para selecionar garrafas
manualmente, uma atividade totalmente inútil atualmente e que os coloca em
condições emocionais de Inferioridade. Quem já passou por assédio moral ou
bullying, sabe do que estou falando.
Eles
sofrem, mas não perdem a oportunidade da ironia. Um vídeo da campanha dos
trabalhadores debocha do clima natalino da transnacional e conta uma versão
contundente sobre o “Natal da Coca”: "O mundo inteiro há de saber a triste
realidade. Empregados sem trabalhar e bullying laboral (no trabalho). Decisões
judiciais sem cumprir. Basta de impunidade. É o momento de dizer: não
aguentamos mais. Não tome Coca-Cola!".
Mais
pertinho de nós agora, filha. América Latina. México. Em 2015 e 2016, a Coca
havia pendurado a marca da empresa na árvore natalina na praça central de
Zócalo, na capital do país, a Cidade do México. Vieram protestos e cartas
endereçados aos poderes Executivo e Legislativo do município. A transnacional
não aguentou a pressão. Imagens com o logotipo da corporação, do Papai Noel
bebendo o refrigerante e de ursos polares das campanhas publicitárias foram
retiradas.
Ah,
sim, não posso deixar de lhe contar: o México tem o maior consumo de Coca por
pessoa no planeta. Também por isso, é o país que carrega um “troféu” pesado e
desagradável: em 2013, foi o campeão mundial em obesidade. Hoje, segue entre os
primeiros lugares. Setenta por cento dos adultos e 30% das crianças têm
sobrepeso ou são obesos. Diabetes (só esse mal mata 80 mil pessoas por ano no
país) e outras doenças crônicas se espalham. Recentemente, foi criado um
imposto especial sobre bebidas açucaradas para tentar conter essa epidemia.
Voltamos
ao Brasil. Lembra-se de uma grande árvore de Natal que você visitou comigo há
alguns anos, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo? Este ano, ela cresceu. Foi
anunciada como a maior dos últimos tempos, com 40 metros de altura. Até aqui,
tudo parece legal, certo? Errado. A
questão é que o projeto resulta de uma parceria entre a prefeitura do
município, comandada por um cara chamado João Dória Jr., e a Coca-Cola. Sim,
ela colocou penduricalhos na árvore que você adorou. E não foi discreta.
Instalou, no topo, uma garrafa simbolizando a marca, dividindo o espaço com uma
estrela natalina de oito metros.
A
Coca “investiu” R$ 1,5 milhão na árvore porque os executivos da empresa sabiam
que ganhariam muito mais do que gastaram graças à tamanha visibilidade dada à
marca. Só que era contra a lei, filha. Algo contrário às normas da própria
prefeitura. Em 4 de dezembro passado, os badulaques foram retirados, a
contragosto da transnacional e do prefeito.
Como
a gente pode perceber, o refrigerante mais vendido no mundo é mais combatido
hoje - as vendas, inclusive, estão caindo planetariamente. Contudo,
reconheçamos que a Coca-Cola é esperta e tentará te conquistar (e a muitas
outras crianças, que formam o público preferencial da empresa) dizendo que
também fabrica coisas saudáveis, como chás e sucos, o que dá outra história a
ser contada, num outro dia.
Saiba
que é linda a sua convicção na imaginação e que apenas contei a verdade sobre o
velhinho no ano passado porque você fazia questionamentos inescapáveis.
Lembre-se, sempre, que seus pensamentos lhe pertencem. Nem mesmo familiares ou
outros adultos podem tirar o seu direito de pensar livremente. Muito menos
empresas que querem nos empurrar produtos e datas comerciais consumistas com
discursos mentirosos. Converse com a sua irmã mais velha, que sabe bem os males
que o excesso de "alimentos porcarias” pode causar. Quanto ao caçula,
deixe-o crer no Noel. Porém, aconselhe-o a não entrar em “ondas” de
refrigerantes, principalmente na maior delas.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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