Há
pouco mais de um mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão
controversa de conceder ao Legislativo a prerrogativa de derrubar medidas
cautelares impostas pela Justiça contra parlamentares. Em análise estava o caso
do senador Aécio Neves, afastado do seu mandato e a quem tinha sido imposta uma
ordem de recolhimento noturno.
A
decisão foi fruto de um julgamento confuso, onde a presidente do STF, Cármen
Lúcia, titubeante, acabou dando o voto de minerva. À época, especialistas
ouvidos pela DW apontaram que casos como o de Aécio iam "se repetir em
todos os três níveis, do vereador ao deputado federal”. E foi o que aconteceu.
O
caso ainda escancarou como a própria Justiça e o STF vêm tomando decisões
contraditórias sobre o assunto.
Afirmando
estar amparadas no entendimento do STF, Assembleias Legislativas e Câmaras
Municipais Brasil afora aproveitaram a decisão sobre o caso Aécio para livrar
seus próprios deputados e vereadores alvos de mandados de prisão ou ordens de
afastamento. No caso de Aécio, o Senado acabou decidindo por 44 votos a 26
devolver o mandato do tucano. O mesmo roteiro acabou sendo seguido em outros
quatro episódios nos níveis estadual e municipal.
A
aplicação mais famosa da "fórmula Aécio” ocorreu no Rio de Janeiro na
sexta-feira 17, quando a Assembleia estadual evocou a decisão do STF para votar
e determinar a soltura do presidente da Casa, Jorge Picciani (PMDB) e outros
dois deputados estaduais. Acusados de desviar verbas, eles acabaram sendo
liberados da cadeia sem que qualquer tribunal tenha sido notificado, apenas com
um alvará emitido pela Alerj, tendo passado menos de 24 horas presos.
Na
terça-feira 22, uma reviravolta: o Tribunal Regional Federal da 2° Região
(TRF-2) determinou mais uma vez as prisões, afirmando que a soltura dos
deputados sem qualquer comunicação à Justiça havia sido ilegal. "Parecia
um resgate de bandidos”, disse um desembargador que analisou o caso.
Outro
caso similar ocorreu em Mato Grosso. Uma semana após o Senado devolver o
mandato de Aécio graças à decisão do STF, a Assembleia estadual (ALMT) votou
pela soltura e devolução do mandato do deputado Gilmar Fabris (PSD), que estava
afastado e preso havia 40 dias por ordem do próprio STF por suspeita de
obstrução da Justiça.
Assim
como no Rio, Fabris também saiu da prisão com um alvará emitido pela própria
Assembleia, sem uma autorização da Justiça. Só que neste caso, a maior parte
dos desembargadores do TRF-1, responsável pela área de Mato Grosso, entendeu
que o alvará de soltura concedido pela Assembleia era suficiente e que a Casa
estava de fato amparada na decisão do STF sobre o caso Aécio.
Dessa
forma, Rio e Mato Grosso, dois casos iguais, acabaram tendo entendimentos
totalmente opostos quando foram analisados pelos seus respectivos tribunais
federais.
No
Rio Grande do Norte, no final de outubro, a Assembleia local também revogou o
afastamento de um deputado. O mesmo ocorreu com um vereador de Natal, no mesmo
estado.
Diante
das iniciativas das Assembleias, a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB)
apresentou na quarta-feira 22 três ações no STF pedindo que as Assembleias não
possam seguir o exemplo do caso Aécio.
Dessa
forma, o STF deve voltar a se pronunciar novamente sobre sua decisão que acabou
autorizando o Senado a devolver o mandato de Aécio. Mas, como mostraram os
casos contrastantes entre Mato Grosso e Rio de Janeiro, a própria Justiça não
parece se entender. E o mesmo vale para o STF.
Em
entrevista à BBC Brasil, o ministro do STF Luiz Fux afirmou que a decisão da
Alerj de soltar os deputados foi "lamentável” e "fruto de uma
interpretação incorreta” da decisão do tribunal de que deputados estaduais têm
as mesmas imunidades de congressistas federais.
Mas
quatro outros ministros ouvidos pelo jornal O Globo afirmaram que as
Assembleias têm prerrogativas para soltar seus deputados, desde que isso seja
comunicado à Justiça.
O
problema é que há mais de uma década o STF também criou uma jurisprudência ao
decidir que a prisão de um grupo de deputados estaduais de Rondônia não poderia
ser analisada e votada pela Assembleia estadual. Essa decisão de 2006 partiu da
ministra Cármen Lúcia e levou em conta que a maior parte dos deputados do
estado estava sendo investigada.
Só
que dois ministros do STF afirmaram ao jornal O Globo que as Casas têm
autonomia para devolver os mandatos de deputados afastados com base na decisão
do caso Aécio, já que a Constituição Federal dá aos deputados estaduais as
mesmas imunidades que têm direito os senadores e deputados federais.
Só
que há mais um elemento para confusão: a ementa do julgamento do caso Aécio, um
resumo do que aconteceu no plenário, que foi escrita pelo ministro Alexandre de
Moraes, fala que o julgamento dizia respeito apenas a "parlamentares
federais”, sem qualquer menção a deputados estaduais ou vereadores.
Diante
desse quadro, alguns ministros já admitem que o STF deve voltar ao assunto e
explicitar melhor se o resultado do julgamento deve ter um efeito cascata ou
não.
Para
o professor de direito constitucional Rubens Glezer, da Fundação Getúlio Vargas
de São Paulo, o próprio STF acabou contribuindo para esse cenário caótico.
"O ministros do STF tomam decisões sem detalhá-las, já que não gostam de
se sentir vinculados aos seus precedentes. Era perfeitamente possível antecipar
que as Assembleias e Câmaras iriam seguir o exemplo do caso Aécio. O STF
simplesmente não redigiu diretrizes claras sobre a sua própria decisão,
deixando pontas soltas e contribuindo para esse cenário”, disse.
"Esse
é o problema quando se tem um tribunal que analisa as coisas pontualmente, sem
criar regras gerais e sem olhar para sua própria jurisprudência.”
Segundo
Glezer, o STF agora se colocou em uma posição ainda mais complicada ao deixar
todas essas pontas soltas. "Se o tribunal decidir que o caso só valia para
o Congresso, vai ser acusado de ter criado uma regra específica apenas para
beneficiar o senador Aécio Neves. Se resolver esclarecer que a regra vale para
todas as Casas Legislativas do Brasil, vai ser acusado de golpear a operação
Lava Jato de Norte a Sul. Os ministros se colocaram nessa situação, em pleno
centro da crise”, disse.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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