A
briga política do Ceará foi motivo de decisão ontem no Supremo Tribunal Federal
(STF), mas o Estado — e o julgamento — ficaram em quinto plano diante de um dos
mais ruidosos embates travados em muito tempo na cúpula da Justiça brasileira.
Estava em questão a extinção do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) do
Ceará, motivada pelo rompimento entre a base governista estadual e o presidente
do extinto TCM, Domingos Filho. Questão importante, que envolve a forma de
fiscalização dos municípios cearenses e o jogo de poder no Estado. Para
ministros do Supremo, todavia, foi brecha encontrada para se provocarem
mutuamente. O resultado foi uma baixaria que expõe o quanto alguns dos
magistrados mais importantes do Brasil se odeiam.
Mais
uma vez, esteve envolvido Gilmar Mendes. Não há confusão no Supremo — e muitas
vezes nem na política — sem que ele tenha participação. O bate-boca começou
quando ele fez alusão à crise no Rio de Janeiro. O Estado usava dinheiro de
depósitos judiciais para pagar precatórios. Gilmar concedeu liminar em
fevereiro para impedir isso. Em junho, o ministro Luís Roberto Barroso, natural
do Estado do Rio, liberou o procedimento. Ontem, Gilmar achou o momento
oportuno para retomar a discussão:
Gilmar
— A prova de que falta criatividade ao administrador é o caso do Rio de
Janeiro.
Barroso
— Deve achar que é o Mato Grosso, onde está todo mundo preso”, provocou
Barroso, em alusão ao Estado natal do colega.
Gilmar
— Não, no Rio não está.
Então,
Barroso novamente ironizou: “Nós prendemos. Tem gente que solta”. Era
referência a polêmicos habeas corpus concedidos pelo colega de STF, como para o
empresário Jacob Barata. Então, a coisa esquentou. “Vossa excelência, quando
chegou aqui, soltou o José Dirceu (PT)”, afirmou Gilmar. “Porque recebeu
indulto da presidente da República”, justificou Barroso (a rigor, o indulto não
era direcionado a Dirceu. Barroso considerou que o petista se enquadrava nos
critérios estabelecidos em decreto presidencial). Gilmar insistiu que a decisão
ocorrera em julgamento dos embargos. Então, Barroso se indignou:
“Absolutamente.
É mentira, é mentira. Aliás, vossa excelência normalmente não trabalha com a
verdade. (...) Vossa excelência está fazendo um comício que não tem nada a ver
com a extinção do Tribunal de Contas do Ceará. Vossa excelência está queixoso
porque perdeu o caso dos precatórios e está ocupando tempo do plenário com
assunto que não é pertinente, a destilar esse ódio constante que vossa
excelência tem e agora dirige contra o Rio. Vossa excelência devia ouvir a
última música do Chico Buarque: ‘A raiva é filha do medo e mãe da covardia’.
Vossa excelência fica destilando ódio o tempo inteiro. Não julga, não fala
coisas racionais, articuladas. Sempre fala coisa contra alguém, está sempre com
ódio de alguém, está sempre com raiva de alguém”.
Gilmar
deu risada e voltou a falar de Dirceu. A presidente Cármen Lúcia pediu que se
retornasse ao assunto do julgamento — o extinto, e àquela altura esquecido, TCM
cearense. Pouco adiantou. Barroso ressaltou que manteve Dirceu preso, revogou
prisão domiciliar. E que a decisão de libertar o ex-ministro foi da segunda
turma do STF. “Não transfira para mim esta parceria que vossa excelência tem
com a leniência em relação à criminalidade do colarinho branco”, atacou. Gilmar
deu risada e ironizou: “Imagine”.
Cármen
de novo interveio: “Estamos no plenário de um Supremo Tribunal”. Mas, a
polêmica não parou. “Quanto ao meu compromisso com o crime de colarinho branco,
presidente, eu tenho compromisso com os direitos fundamentais”, disse Gilmar. E
bateu: “Não sou advogado de bandidos internacionais”, numa referência ao fato
de Barroso ter defendido o ex-ativista italiano Cesare Battisti. Barroso
respondeu: “Vossa excelência vai mudando a jurisprudência de acordo com o réu.
Isso não é Estado de Direito, é Estado de compadrio. Juiz não pode ter
correligionário”.
Nesse
clima, o STF tomou definitiva a extinção do TCM cearense. A decisão foi
acachapante: oito votos a dois. Votaram por reverter a extinção e recriar o TCM
apenas Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os dois ministros cujas, digamos,
opiniões mais convergem com as do Palácio do Planalto. Pode ser coincidência: a
extinção do tribunal cearense atende aos interesses dos governistas locais e
desagrada a oposição — composta pelos aliados estaduais do presidente Michel
Temer (PMDB).
Publicado
originalmente no portal O Povo Online
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