Há
pouco mais de 30 anos, quando a banda Titãs e a sociedade brasileira exigiam
uma cidadania plena, com diversão e balé, era difícil imaginar que pedir apenas
comida seria um dia uma posição audaciosa.
Pois
cá estamos, 2017, uma época em que a cultura é criminalizada e nossos
governantes nos obrigam a repensar o significado da alimentação.
O
prefeito de São Paulo, João Doria Jr., ao propor a distribuição de restos de
comida transformados em ração à população mais vulnerável, é pelo menos
consequente com sua visão de mundo.
Uma
visão forjada ao longo de séculos de escravidão da qual ele é, literalmente,
herdeiro, tendo entre seus antepassados senhores de engenho donos de escravos.
Não
é coincidência que uma das principais "publicações" do "grupo
Doria" seja uma revista chamada Caviar Lifestyle. Ao mesmo tempo, o
prefeito, em vídeo de 2007, questiona em seu reality show se os pobres e
miseráveis possuem "hábitos alimentares". Claro que não.
Dória
é consistente quando distingue a alimentação digna, privilégio de sua casta, e
a nutrição da força de trabalho, um inconveniente a ser contornado.
Nenhuma
novidade.
Celso
Furtado nos recorda, por exemplo, que em momentos de alta no preço do açúcar os
senhores de engenho aumentavam a área de canavial em prejuízo da cultura de
subsistência, levando a episódios de fome entre escravos e a pequena população
livre e pobre.
A
deterioração da merenda escolar parece ser prioridade, dentro de um projeto de
abandono dos mais vulneráveis. Derrubar casas com gente dentro, tirar o leite
das criancinhas (Programa Leve Leite, criado pelo Maluf!), fechamento de
unidades de atendimento de saúde, o desastre da cracolândia apenas demonstram
para quê e quem Doria governa.
O
recente episódio da ração humana, abençoada pela igreja católica, é apenas mais
um capítulo nessa novela distópica.
A
falta de transparência, a já notória truculência com que se apresentam
projetos, tem sido amplamente criticadas pela mídia, assim como o aparente
trambique entre empresas de fachada, grandes interesses corporativos e um
prefeito em plena campanha.Tratarei, portanto, de aspectos culturais e
econômicos, não menos centrais à essa questão.
Fome,
um projeto das elites
Os
brasileiros costumam apreciar a gastronomia americana. Hambúrgueres,
cachorro-quente, batata-frita e onion rings, até bolacha (ou biscoito, para os
cariocas) eles fritam.
A
seção de congelados de um supermercado qualquer possui opções de culinárias internacionais,
refeições completas prontas para o microondas.
Embora
muitos prefiram tais comodidades, o que se observa há alguns anos é o retorno a
hábitos alimentares mais tradicionais e menos dependentes de alimentos
processados.
Recorrentes
estudos da Organização Mundial da Saúde e outras entidades que se dedicam ao
tema apontam para a necessidade uma alimentação balanceada, que inclua
ingredientes "de verdade", como arroz, feijão, carne, salada.
Os
EUA, que passaram por um processo de urbanização anterior e mais abrangente do
que o brasileiro, além de serem o centro mundial da comida industrializada, são
o mau exemplo nessa história.
O
país apresenta um dos maiores índices de obesidade e, menos frequentemente
notado, sua população perdeu em larga medida as referências alimentares mais
básicas. Muitas vezes, fazendo compras por aqui, tive de explicar ao caixa do
supermercado que aquilo era uma beterraba, uma batata doce ou um rabanete.
A
perda de contato com o campo, aliada ao barateamento relativo dos produtos
industrializados frente aos orgânicos, levou os EUA à atual situação. Ao mesmo
tempo, hoje, cozinhar tornou-se um sinal de sofisticação das classes mais
altas.
O
Brasil, quanto a isso, é um país privilegiado.
Temos
ao menos cinco gastronomias distintas, todas elas riquíssimas, e o
antropofagismo de Oswald de Andrade chegou aos pratos dos "quilos",
onde se misturam sushi e picanha com a maior naturalidade. Já na carta de Pero
Vaz descreve-se não a fome dos locais, que não havia, mas a fartura de um
paraíso na terra. A fome chegou com os portugueses e é um projeto das elites
governantes desde então.
Mantivemos,
no entanto, ao longo do tempo, hábitos alimentares que não apenas nutrem o
corpo, mas fazem parte da nossa cultura e sociabilidade. O almoço na casa da
avó, o churrasco com os amigos, a feijoada no domingo. São experiências que se
opõem à tendência de homogeinização e isolamento e nos dão algum sentido de
pertencimento.
A
alimentação, o ato de preparar alimentos, já disse Lévi Strauss, é pilar
fundamental de uma sociedade e um sinal de sua sofisticação. Outros bons
exemplos seriam o México ou o Japão.
A
proposta da ração humana de Doria vai na contramão do que dizem os
especialistas, do que somos como sociedade e das políticas bem sucedidas que já
estavam em curso na gestão de Fernando Haddad (PT), subitamente interrompidas,
bem com no nível federal, com o Programa de Aquisição de Alimentos.
Mais
um retrocesso, que contraria, inclusive, o Guia Alimentar para a População
Brasileira, de 2014, publicado pelo Ministério da Saúde.
A
receita que tirou o Brasil do mapa da fome é simples: promoção da agricultura
familiar e local, o que reduz custos logísticos, com financiamento subsidiado e
seguro de safra e uso da produção em escolas e hospitais (além do aumento da
renda e emprego, é claro).
Tal
política barateia os alimentos não-processados para todos e, de bônus, mantém o
pequeno agricultor no campo, reduzindo desigualdades regionais e pressões sobre
os centros urbanos. Há ampla evidência, por fim, de que uma alimentação
saudável reduz os custos com saúde.
Privar
crianças e vulneráveis do acesso a uma alimentação digna retira dessas pessoas
a possibilidade de uma existência plena, reduzindo-as a máquinas que necessitam
de combustível.
Como
entender todas as referências da cultura brasileira à comida, os tantos sambas
que dão água na boca, as naturezas mortas que retratam para eles objetos
desconhecidos?
Nenhuma
natureza morta seria mais morta do que um quadro daquelas bolotas cinzas e
insossas apresentadas por Doria. Aos eruditos, que seria de Proust e sua
obra-prima se as "madeleines" fossem feitas com farinata?
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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