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6 de setembro de 2017

"Não sou o diabo. Sou Exu" por Pai Rodney

Escultura de Exu na Praça dos Orixás, em Brasília-DF (Foto: Divulgação)
A ascensão das igrejas neopentecostais, sobretudo as mais midiáticas e espetaculares, fez reacender a fama de Exu. Ao voltar a associar suas representações e aquela dos demais orixás à figura do diabo cristão, num processo de demonização cujos reflexos negativos são sentidos por cada fiel e em todos os terreiros, colaboraram para atos de intolerância religiosa se tornarem ainda mais comuns.

Exu não é o demônio. Essa associação fez com que o orixá fosse mal interpretado e mal compreendido. Só para se ter uma ideia, no Brasil, os missionários cristãos relacionaram-no com o diabo. Já em Cuba, por sua característica de orixá brincalhão e esperto, foi sincretizado com o Menino Jesus.

Certo que o perfil tão humano de Exu foi uma via fácil para demonizá-lo, numa maneira superficial e ingênua de sincretizar. Mas quem teve a oportunidade de conhece-lo sabe que é um orixá fundamental na cosmovisão e na filosofia afro-religiosas.

É bem verdade que a imagem do malandro carioca combina com Exu, tratado como o “homem das encruzilhadas”, o “rei da noite”, “aquele que nunca dorme”. Essa descrição marginal tem muito a ver com a situação social da população negra, sobretudo os homens negros, no pós-escravidão.

Como meio de sobrevivência, o que sobrou para alguns foi a contravenção, e mesmo aqueles que conseguiram uma subcolocação, seja no trabalho braçal das ruas, seja nas estivas, sofreram com o estigma da criminalidade.

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Tomo emprestada a composição de Aluísio Machado e Beto Sem Braço, interpretada por Zeca Pagodinho, para lhes apresentar Exu, o mais controvertido dos orixás: “Ao me ver, já diz que me conhece, sem saber bem quem eu sou. Conhece mas desconhece meu real interior”.

Ou seja, todo mundo acha que sabe quem é Exu, mas preconceitos e estereótipos não o definem. Se a discriminação contra as religiões de matriz africana é grande, com esse orixá é ainda maior. Portanto, a quantidade de absurdos que se falam sobre Exu ou até as barbaridades que lhe atribuem estão longe de traduzir quem de fato ele é.

Então, vamos voltar aos versos da canção, que, embora não se refiram explicitamente ao orixá, traduzem com perfeição sua essência: “Eu sou verso, sou reverso. Sou partícula do universo. Sou prazer, também sou dor. Eu sou causa, sou efeito. Sou torto, eu sou direito. Enfim, eu sou o que sou”.

Agora, imaginem se o próprio Exu estivesse aqui a se apresentar, todo espirituoso e pândego, como lhe é peculiar. Talvez ele o fizesse mais ou menos assim:

“Disseram que eu era o diabo. Mario Cravo esclareceu: Não sou diabo nem santo, sou Exu! Muito prazer! Não ligue para o que dizem a meu respeito, tudo mentira! Quem pode me definir se sou a própria contradição? Nem bom nem ruim, nem quente nem frio, nem sombra nem luz! Mas não se engane, não sou meio-termo. Sou tudo e não sou nada! Ousadia é meu nome. Estou sempre pronto, pra luta ou pra farra. Experimentei o melhor da vida, e gostei! Se me disserem que é impossível, vou e faço. Se me pedir, eu dou. Se me agradecer, eu retribuo. Se me der, eu aceito. Se me negar, eu tomo. Aos meus, ensinei a rir da própria sorte, a ter esperança, a acreditar pra ver. Se a vida vai mal, sambo e esqueço. Se vai bem, sambo e festejo! Já te disse meu nome? Sou Exu! Muito prazer!”

Senhor dos caminhos e das encruzilhadas, mensageiro dos orixás, Exu é o dono da rua. Vale lembrar que a encruzilhada tem uma importância simbólica universal, representando o centro e o lugar de passagem entre os mundos dos homens e dos deuses. É a morada de Exu, que tem justamente a tarefa de ligar o sagrado ao profano, sendo o orixá da comunicação e o princípio dinâmico que rege a existência.

No local em que duas ruas se cruzam, Exu recebe suas oferendas, atende e leva os pedidos dos homens aos orixás. Ele que abre os caminhos, por isso é o primeiro a ser cultuado e sem sua permissão nada acontece. As festas de rua, com muita gente, muita bebida e muita alegria, são suas preferidas. E a tradição dos terreiros de Candomblé recomenda que nenhum fiel brinque o carnaval sem prestar homenagens e reverências a Exu.

Seu símbolo chama-se Ogó. É um porrete de forma fálica que permite a Exu se transportar pra qualquer lugar, a qualquer tempo. Exu fala todas as línguas, conhece todas as dores e compreende todos os sentimentos. Está em cada um e em todos e é o orixá que segue na frente e nos livra dos riscos e perigos.

Quem tem intimidade com Exu costuma chamá-lo de compadre. Jorge Amado tinha essa liberdade e, conhecendo Exu como poucos, disse com propriedade no romance Bahia de Todos os Santos: “Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, escondido na meia-luz da aurora ou do crepúsculo, na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da noite, Exu guarda sua cidade bem-amada”.

A dicotomia excludente de bem e mal é conceito que não se aplica ao Candomblé, pois o mesmo fogo que cozinha, incendeia. Exu é o mais humano dos orixás e o mais divino entre os homens. Aquele que desconhece o impossível, faz o erro virar acerto e o acerto virar erro. Exu mata um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. Laroiê

Publicado originalmente no portal Carta Capital

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