Agorinha
mesmo em visita ao meu Cariri, relembrei, graças a um “sacode” proustiano do
cheiro de pequi, de um poema histórico de Patativa do Assaré (1909-2002). O
mote: Prefeitura sem prefeito. Cansado de procurar, sem sucesso, o alcaide do
município, Patativa denunciou em versos a vacância do cargo, ainda nos anos
1940.
Um escândalo em forma de poesia que provocou a prisão do bardo cearense.
Um bafafá político digno dos sururus satíricos do baiano Gregório de Matos
(1636-1696), o Boca do Inferno.
“Nessa
vida atroz e dura
Tudo
pode acontecer
Muito
breve há de se ver
Prefeito
sem prefeitura;
Vejo
que alguém me censura
E
não fica satisfeito
Porém,
eu ando sem jeito,
Sem
esperança e sem fé,
Por
ver no meu Assaré
Prefeitura
sem prefeito.
Donde
se lê Assaré, leia-se o Brasil todinho. Basta uma simples errata no encarte do
mapa. Em conversa com Patativa, em uma madruga de 1980, no bar Pau do Guarda,
no Crato, ele mesmo dizia, instigado por goles de Xanduzinha com
pirão-de-galinha: “É só trocar o prefeito pelo general Figueiredo -o último
presidente da Ditadura Militar, o mandatário da época”. E nessa levada poética,
renovamos agora, sob data vênia patativesca, em mais uma crônica do pós-golpe:
“Por
não ter literatura,
Nunca
pude discernir
Se
poderá existir
Prefeito
sem prefeitura.
Porém,
mesmo sem leitura,
Sem
nenhum curso ter feito,
Eu
conheço do direito
E
sem lição de ninguém
Descobri
onde é que tem
Prefeitura
sem prefeito.
Aqui
no Sítio das Cobras, Santana do Cariri, em missão família, apresento a filha
Irene ao vô Demar, dou mais uma roída no pequi da história, e Patativa
reverbera, como se ouvisse pela primeira vez, na rádio Araripe do Crato:
“Ainda
que alguém me diga
Que
viu um mudo falando
Um
elefante dançando
No
lombo de uma formiga,
Não
me causará intriga,
Escutarei
com respeito,
Não
mentiu este sujeito.
Muito
mais barbaridade
É
haver numa cidade
Prefeitura
sem prefeito.
Quem
precisa de realismo-fantástico, com todo respeito ao velho Gabo, diante do
noticiário sobre a política brasileira? Era o que Patativa já percebia desde
jovem poeta. Presidência sem presidente! Ô Temer febre do rato, estampô
calango, acoloiado com o demo, besta fubana, cão do último livro, gota serena,
infeliz das costas ocas... Só a poesia do Cariri nos salva:
“Não
vou teimar com quem diz
Que
viu ferro dar azeite,
Um
avestruz dando leite
E
pedra criar raiz,
Ema
apanhar de perdiz
Um
rio fora do leito,
Um
aleijão sem defeito
E
um morto declarar guerra,
Porque
vejo em minha terra
Prefeitura
sem prefeito.
Publicado
originalmente no portal El País
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