Desde
o furo de O Globo sobre o envolvimento de Michel Temer em crimes como obstrução
à Justiça e corrupção passiva, em maio passado, todo o jornalismo do Grupo
Globo está focado em fortalecer e legitimar as denúncias contra o presidente.
Nesta semana, a Globo decidiu, entretanto, incidir de forma mais direta na
condução da crise que corrói a gestão do PMDB há quase dois meses.
Em
pleno domingo 9 de Brasília, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), logo após conversar com Michel Temer, foi a uma casa no Lago Sul, em
Brasília, para participar de um almoço. Era a residência de Paulo Tonet Camargo,
vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo. A informação,
veiculada pela Folha de S.Paulo, é a de que Maia estava acompanhado de outros
cinco políticos, todos de partidos da base aliada de Temer, inclusive o
ministro de Minas e Energia, Fernando Bezerra Coelho.
Os
carros das autoridades, todos sem identificação oficial, só deixaram o local
mais de cinco horas depois, já à noite. De acordo com o deputado Heráclito
Fortes (PSB-PI), que passou de combatente a aliado dos governos petistas para
depois apoiar a gestão de Michel Temer, tratou-se de um encontro agendado com
mais de 30 dias de antecedência, sem nenhuma relação com a conjuntura atual.
Acredite quem quiser.
Dias
antes, cresciam as especulações de que Rodrigo Maia poderia ter apoio
suficiente para assumir a Presidência da República no caso de afastamento de
Temer. No dia seguinte, seria lida a relatoria sobre a denúncia contra Temer na
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).
Não
por acaso, o relator, Sergio Zveiter (PMDB-RJ), tem o Grupo Globo como cliente
de serviços jurídicos há mais de 40 anos. No Congresso, Zveiter, também
considerado próximo a Maia, chega a receber a alcunha de “advogado da Globo”.
Mas
o papel de Zveiter é pequeno perto do desempenhado pelo anfitrião do almoço de
comensais políticos do último domingo. Entre os anos 1990 e o começo dos 2000,
um alto executivo da Globo chegou a ser apelidado em Brasília de “Senador
Evandro”. Era Evandro Guimarães, que ocupava na época exatamente o mesmo cargo
que hoje ocupa Paulo Tonet, dono da casa no Lago Sul.
Além
de lobista oficial do grupo, Tonet acumula desde agosto a presidência da
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Tornou-se
figura recorrente na proa das principais negociações em torno de decisões
políticas e econômicas envolvendo o Executivo, o Congresso e mesmo o STF – onde
a Abert tem conseguido vitórias importantes para alterar leis e normas
regulatórias às quais se opõe, como a Classificação Indicativa.
Colega
de trabalho de Paulo Tonet, após onze anos em diferentes cargos do Executivo
Federal, Marcelo Bechara foi contratado como “Diretor de Regulação” do Grupo
Globo, para tratar exclusivamente de questões jurídicas e legislativas.
Secretário-executivo do Ministério das Comunicações de 2005 a 2010, nos dois
governos de Luiz Inácio Lula da Silva, quando o órgão era comandado por Hélio
Costa (PMDB-MG), e conselheiro da Anatel de 2011 a 2015, nas duas gestões de
Dilma Rousseff, Bechara hoje transita no Congresso e na Esplanada com
facilidade para defender os interesses da empresa.
Mas
a reunião desta semana revela uma entrada ostensiva da família Marinho na
operação política como há tempos não se via. Mesmo antes e durante o processo
de impeachment de Dilma Rousseff, os irmãos só chegaram a se posicionar em
agosto de 2015 e, ainda assim, limitaram-se a dialogar com empresários no
sentido de ponderar a impertinência da insistência em derrubar a presidenta.
Para eles, isso geraria mais instabilidade política e insegurança jurídica, o
que não era bom para os negócios num momento de grave crise econômica.
Meses
antes, em junho de 2015, em meio a diversas batalhas com uma Câmara controlada
por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a ondas negativas da imprensa corporativa
dirigidas contra o governo e a manifestações massivas das classes médias a
favor do impedimento, Dilma Rousseff chegou a ir ao Rio de Janeiro prestigiar o
encontro da não tão relevante Academia Internacional de Televisão e, ainda,
homenagear os 50 anos da TV Globo, completados em abril daquele ano.
Agora,
a “editorialização” excessiva do jornalismo de todo o Grupo Globo contra Michel
Temer comprova, obviamente, que os irmãos Marinho querem a cabeça do presidente
da República – e logo.
No
mercado de mídia, a Globo se antecipou ao dar as informações sobre as delações
de Joesley e Wesley Batista, aparentemente sem poupar nomes do governo ou do
próprio Aécio Neves (PSDB-MG), que costumava receber tratamento positivo dos
Marinho.
À
primeira vista, a intenção era não perder o controle da situação e manter a
relevância do grupo numa possível nova transição de governo. Por fora do quadro
político estrito, os mentores do Grupo Globo não costumam abrir mão de arbitrar
e moderar os rumos da política e da economia nacionais, tarefa que sempre
outorgaram a si mesmos, como se fosse uma missão do grupo desde a origem.
Orbitam e tentam influenciar figuras do meio político, mas também do
Judiciário, o poder mais impermeável e hermético, portanto bem menos
“republicano”.
Os
questionamentos, então, dizem respeito às razões que levaram o Grupo Globo a,
ao embarcar no ataque contra Temer, pôr em risco a agenda programática das
reformas, apoiada pelos donos do PIB nacional de forma quase unânime.
Afinal,
o apoio editorial e as articulações políticas em torno da derrubada de Temer
estão longe de significar uma discordância do Grupo Globo em relação às pautas
encabeçadas por ele. Vale lembrar que frações ainda consideráveis do “mercado”
seguem bem reticentes em abandonar totalmente a sustentação do governo.
Para
ajudar a empurrar Temer e tentar salvar sua agenda, os telejornais globais têm
feito uma ginástica retórica em separar a “necessária” aprovação das reformas
da figura do presidente ilegítimo. Nessa operação, têm, como é de praxe,
omitido informações relevantes, invisibilizado e condenado os argumentos e
protestos contrários às reformas.
Na
terça-feira 11, a matéria do Jornal Nacional sobre a aprovação da reforma
trabalhista no Senado teve como foco a tentativa das senadoras de oposição de
obstruir a votação: “O Senado registrou hoje uma cena que jamais tinha sido
vista na história da Casa. Um grupo de senadoras da oposição decidiu
simplesmente ocupar a mesa do Plenário para impedir a votação da reforma
trabalhista. E lá ficaram interditando os trabalhos por mais de seis horas”,
anunciou Renata Vasconcelos.
Segundo
a matéria, “a atitude das senadoras foi condenada por colegas de diversos
partidos”. “Protesto não se faz dessa forma”, ensinou o senador Cássio Cunha
Lima (PSDB-PB). Mais dois senadores foram ouvidos, todos contrários à ocupação
da Mesa, sendo um deles José Medeiros (PSD-MT), que entrou com pedido contra
elas, já aceito, no Conselho de Ética, por quebra de decoro parlamentar.
A
informação veiculada sobre as mudanças aprovadas na CLT foi a seguinte: “A
reforma trabalhista dá força de lei a acordos celebrados entre trabalhadores e
patrões, respeitando os direitos assegurados pela Constituição, como FGTS e 13º
salário; permite que férias possam ser divididas em até três períodos; acaba
com a obrigatoriedade da contribuição sindical, equivalente a um dia de salário
do trabalhador; permite que o intervalo de almoço possa ser reduzido para 30
minutos, diminuindo a jornada mediante negociação coletiva; e inclui a jornada
intermitente: o trabalho em dias alternados ou por algumas horas, como o de
trabalhadores de bares ou eventos”.
A
construção retórica é clara. A atitude das senadoras teria sido antidemocrática
e contra uma reforma que não representaria nenhuma perda de direitos. O que o
Jornal Nacional se esqueceu de mencionar foi que a união das senadoras de
oposição contra a votação da reforma teve um motivo especial: o texto da nova
lei autoriza que grávidas e lactantes trabalhem em ambientes insalubres. O item
misteriosamente sumiu da lista de alterações que o JN considerou relevante
enumerar.
Nenhuma
palavra foi dada às senadoras ou a qualquer outra fonte que as apoiasse. O fato
de o presidente da Casa, Eunício Oliveira (PMDB-CE), ter mandado cortar a luz
do Senado foi mencionado com naturalidade, ignorando seu caráter autoritário.
As regras para a entrada no Senado naquele dia, que barraram a presença de
centenas de trabalhadores e sindicalistas na Casa, sequer foram citadas.
Pouco
ou nada se diz na Globo também sobre os protestos que, há meses, em diferentes
cidades do país, rechaçam a reforma trabalhista. Como já havíamos mostrado
neste blog, a cobertura dos atos e greves contrários às reformas deixa evidente
o apoio da Grupo Globo às retiradas de direitos trabalhistas e previdenciários.
Diante
do quadro de crise aguda e endêmica na política institucional, o Grupo Globo
tenta agora catalisar a insatisfação geral da população com o governo e, em
especial, a indignação das classes médias e altas com a corrupção. Quer
capitalizar-se como a intérprete e a vocalizadora hegemônica desse pensamento
diluído, apresentado como a síntese possivelmente unificadora do País. A um só
tempo, portanto, a Globo opera em diversas instâncias.
No
plano político, busca manter-se como âncora e bússola para gestores,
parlamentares e outros agentes públicos, interferindo diretamente na orientação
das decisões que vão definir o cenário a curto e médio prazos, inclusive no
Judiciário, operando um dos braços da sua capacidade de direção cultural,
complementada pela orientação em questões morais e identitárias.
No
nível econômico, sustenta uma campanha proativa, que obviamente alcança e
integra o jornalismo, em apoio às agendas liberalizantes, prescrevendo reformas
regressivas, privatizações e ajuste fiscal como únicas soluções eficazes para a
crise por que passa o Brasil desde 2012.
Por
fim – como causa e consequência dos outros dos níveis –, procura se
(re)posicionar como o único agente da indústria cultural com capacidade
produtiva (técnica e estética), lastro socioeconômico, influência política e
estabilidade financeira para, ao menos aparentemente, defender linhas de
atuação próprias e autônomas (a governos e empresas corruptoras) que funcionem
como balizadoras para a unificação nacional.
A
chave de análise sobre a postura da Globo, nos últimos e provavelmente nos
próximos anos, reside na visão/missão que o grupo tem consolidado: a partir da
condição de qualificada produtora de conteúdo nacional, mostrar-se como o único
agente de mercado que reúne as condições para interpretar, organizar e
expressar a cultura brasileira, aqui entendida no sentido mais ampliado
possível. E isso também é um perigo para a nossa democracia.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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