De uma tacada, Vargas, Ulysses e Lula desconstruídos |
Em
pouco mais de um ano de governo Temer, o impacto de suas políticas é
devastador. Sem respaldo no voto popular e despreocupado com a opinião pública,
o governo fez da agenda do mercado sua própria agenda, sem freios ou contrapesos
institucionais. Colocou em marcha um programa de rapinagem financeira
totalmente incompatível com a escolha das maiorias. Não por acaso chegou ao
poder por um golpe.
A
contradição entre mercados e democracia não é uma jabuticaba brasileira. Ao contrário,
como resposta à crise mundial, os capitais buscam estabelecer por toda a parte
um regime selvagem de acumulação, em que os direitos sociais são obstáculos e a
soberania do voto popular só vale se não contrariar seus interesses. Que o
digam os gregos e seu plebiscito, atropelado pelas imposições do Banco Central
Europeu.
Só
isso explica como um presidente com 3% de aprovação social segue a governar e a aplicar sua agenda. É o mesmo
poder que permitiu a Henrique Meirelles dizer que fica no comando da economia
independentemente de quem esteja na Presidência.
Com
a rapidez própria aos salteadores, o governo Temer iniciou em um ano o desmonte
dos três pactos nacionais firmados no último século. Pactos que consolidaram
avanços sociais e estabeleceram marcos progressistas, ainda que, pela tradição
das transições brasileiras, tenham sido gestados por cima, sem grandes rupturas
e, por vezes, exatamente com a preocupação de evitá-las. Mas, como disse Freud
a respeito da consciência, “não é grande coisa, mas é o que temos”. Ou
tínhamos.
O
primeiro pacto a ser atacado foi o mais recente deles, o lulista. Ao assumir o
governo em 2003, Lula desenvolveu uma estratégia de concertação social e
política pela qual garantiu avanços às classes populares sem mexer com os
grandes interesses da casa-grande. Ao mesmo tempo que manteve intactas as
estruturas de privilégio, o sistema político e as oligarquias das comunicações,
garantiu uma política de valorização continuada do salário mínimo e programas
sociais que comprometeram parte do fundo público com políticas de redução da
pobreza.
Conhecido
como “ganha-ganha”, o projeto capitaneado por Lula foi atacado duramente pelo
golpismo. Os homens das finanças não queriam mais saber de ganha-ganha, agora
era o momento do ganha-perde. A conciliação deveria dar lugar à espoliação.
Assim, sepultaram a política de valorização salarial e os programas sociais
foram duramente arrochados, quando não simplesmente extintos, como no caso do
Farmácia Popular e do Ciências sem Fronteiras.
O
passo seguinte foi voltar as baterias contra o pacto constitucional de 1988. No
processo de declínio da ditadura, a Constituição assegurou uma rede de proteção
social, com a garantia de serviços públicos universais. Estabeleceu um modelo
de seguridade social, composto da Previdência e do SUS, e definiu a educação
pública e gratuita como direito de todos. Com os limites próprios de uma
transição por cima, hegemonizada pelo Centrão de Ulysses Guimarães, mas também
produto da mobilização dos movimentos sociais, a Constituinte institucionalizou
importantes avanços.
Temer
e sua turma foram direto ao coração, abalado, desses avanços: as fontes de
financiamento. Com o bordão falacioso de que “a Constituição não cabe no
Orçamento”, embalaram a PEC 55, que determinou o congelamento dos investimentos
sociais do Estado pelos próximos 20 anos. Na prática, se esse regime fiscal for
mesmo implementado, significará o fim dos serviços públicos universais e de
qualquer programa social. É tornar o Estado nulo econômica e socialmente, uma
verdadeira desconstituinte. Não por acaso, foi aprovada debaixo de uma chuva de
bombas em frente ao Congresso Nacional, em Brasília.
Agora,
a vítima foi o mais antigo dos pactos sociais brasileiros do último século, o
varguista. A reforma trabalhista deixou em ruínas a CLT, que havia assegurado
por quase 80 anos a regulamentação das relações de trabalho no País. Nem a
ditadura militar, em duas décadas, colocou suas garras na legislação
trabalhista. Em um ano de Temer, ela se foi. A terceirização irrestrita, o
trabalho intermitente e a sobreposição das negociações à proteção legal
escancararam as portas para o capital impor-se sem limites ao trabalhador.
Ademais,
limitaram o poder de recurso à Justiça do Trabalho, ao estabelecer taxas de
perícia e uma série de entraves burocráticos para as ações de reparação pelos trabalhadores.
Foi-se, com a reforma, a última vara que impedia a boca do jacaré de se fechar.
É
preciso reconhecer que a resistência popular ficou aquém do necessário para
barrar essa agenda de destruição nacional. Não houve, é claro, a paz dos
cemitérios. As ruas reagiram e conseguiram adiar por algumas vezes a reforma
trabalhista e evitar até aqui a da Previdência. As mobilizações de março, a
grande greve geral de 28 de abril e a ocupação de Brasília em maio, que o
governo respondeu com o chamado às Forças Armadas, representaram uma escalada
da luta social em defesa dos direitos.
A
conduta de Temer e do Congresso em responder
à mobilização popular pisando no acelerador em sentido contrário gerou,
porém, um misto de apatia e revolta. Apatia pela descrença de que as
manifestações e greves pudessem reverter o quadro. Revolta pelo aumento do
abismo entre o grito das maiorias e as votações parlamentares.
A
apatia, somada ao recuo de algumas centrais sindicais, fez com que a greve
convocada para 30 de junho não conseguisse repetir o sucesso de abril. A
revolta acumula-se e cimenta caminhos de uma legítima desobediência civil. Ela
tem seus tempos, que nem sempre correspondem à urgência das pautas. Mas a
história nos mostra que, quando os canais de representação democrática se
esvaziam e perdem eficácia, prepara-se o terreno para fortes embates.
É
preciso insistir nas ruas. Não há espaço para um projeto nacional
verdadeiramente democrático sem reverter esses retrocessos. E eles não serão
revertidos sem ampla mobilização popular. Esperar sentado por 2018, além de
temerário, é ignorar o que ainda pode vir em termos de regressão social. O
grito das ruas não ecoou ainda do jeito que gostaríamos, mas, novamente citando
o dito de Freud, é tudo o que temos.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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