Em
Rei Lear, William Shakespeare retrata a tragédia do soberano adulado e traído
pelas suas herdeiras. Idoso, decide dividir o reino entre as três filhas. Para
determinar a partilha, solicita que expressem o amor que sentem por ele.
Duas
delas, Goneril e Regan, o adulam abertamente, afirmando que o amam mais que tudo
no mundo. Cordélia, a filha preferida, contraria o rei com sua sinceridade,
dizendo que o ama apenas como pai. Lear deserda-a, expulsando-a do reino.
Tem
início, então, seu declínio rumo à loucura. O dramaturgo inglês parece, entre
muitas outras façanhas, ter antecipado em cinco séculos algumas descobertas da
ciência moderna. O poder eventualmente afasta da realidade e provoca delírios.
Pode também causar danos ao cérebro.
Ele
declara, logo na abertura do texto: “Se o poder fosse uma droga controlada,
deveria vir com uma longa lista de efeitos colaterais conhecidos”. Dacher Keltner,
professor de psicologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, após
analisar duas décadas de estudos científicos, concluiu que indivíduos sob a
influência do poder agem como se tivessem sofrido um trauma no cérebro:
tornam-se impulsivos, ignoram riscos e passam a ver o mundo de forma diferente
de como seus semelhantes o veem.
O
neurocientista Sukhvinder Obhi, da Universidade McMaster, em Ontário, no
Canadá, chegou a conclusão similar estudando comparativamente o cérebro de
pessoas com poder e sem poder. O cientista observou que o primeiro grupo exibia
maior fragilidade em um processo neural denominado “espelhamento”, o qual
fundamenta a empatia.
David
Owen e Jonathan Davidson publicaram, em 2009, um artigo na revista Brain, no
qual examinam presidentes norte-americanos e primeiros-ministros britânicos dos
últimos cem anos. O estudo tem o sugestivo título de “Síndrome da Arrogância:
Uma Desordem Adquirida de Personalidade?” A patologia é relacionada à condição
prolongada e pouco controlada de exercício do poder.
Os
sintomas são notáveis: desprezo pelo próximo, perda de contato com a realidade,
comportamento imprudente e sinais gritantes de incompetência. Conforme Owen, um
neurologista e parlamentar britânico que serviu como secretário do Exterior na
década de 1970, o mundo empresarial e as escolas de negócios não se mostram muito
interessados em pesquisar a questão da arrogância. Significativo!
Uma
exceção talvez seja o trabalho do pesquisador Adam Galinsky, da Columbia
Business School. Professor de gestão, realizou há alguns anos, com
colaboradores, cinco experimentos para testar a hipótese de que indivíduos com
mais poder fundamentam suas ações excessivamente nas próprias perspectivas e
demonstram habilidade reduzida para perceber corretamente as visões alheias. A
hipótese foi provada e os pesquisadores observaram ainda que o poder reduz a
empatia e limita a capacidade de perceber as emoções dos outros.
Haverá
cura para a síndrome da arrogância e outros males oriundos do poder? O primeiro
passo é reconhecer a patologia, tarefa que não deve ser considerada trivial se
considerarmos a condição de fetiche que poder e liderança assumiram em nosso
tempo. Suprida essa primeira condição de tomada de consciência, o que pode ser
feito, conforme lembra Useem, é parar de se sentir poderoso de tempos em
tempos. Para isso, uma boa estratégia é dar espaço a críticos que nos
contradigam e exponham nossas idiossincrasias.
Um
estudo científico conduzido por Gennaro Bernile, da Singapore Management
University, e colaboradores, veiculado em fevereiro no periódico científico The
Journal of Finance, demonstra que executivos que passaram por desastres e
sentiram suas consequências tendem a ser mais atentos e cautelosos na condução
dos negócios. Lembrar sistematicamente de nossas limitações e das forças
maiores que interferem em nossa breve passagem pela Terra também pode ajudar a
manter o espírito alerta, a mente aberta e o ego sob controle. Liderados e
cidadãos em geral agradeceriam.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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