O
suposto encontro de Michel Temer com o "rei da Suécia" trouxe-me a
lembrança de que o artigo primeiro da Constituição da Suécia determina que
"todo o poder provém do povo". Lá, eles levam a sério esse negócio de
democracia e Constituição. No Brasil, prevalece o secular cinismo
desavergonhado.
Na
Constituição de 1934, mesmo com o país submetido aos resquícios da escravidão,
as chamadas autoproclamadas "elites" tiveram o despudor de copiar as
democracias desenvolvidas e escrever que "todos os poderes emanam do povo
e em nome dele são exercidos". O descaramento foi reafirmado na
Constituição de 1967, outorgada, pasmem, em plena ditadura civil-militar.
Essa
zombaria, típica de republiqueta de exploração mercantil e colonial, atinge
níveis avassaladores na conjuntura. Há um fosso profundo entre os anseios da
população e os desígnios dos detentores da riqueza financeira.
A
sociedade é contra a permanência de Michel Temer na Presidência da República.
Segundo a pesquisa Datafolha divulgada no sábado 24 , 69% avaliam governo como
ruim ou péssimo, e só 7% dos entrevistados consideram-no ótimo ou bom. A
renúncia é defendida por 76% dos entrevistados; 81% são a favor da abertura de
um processo de impeachment contra ele; e 83% preferem que o novo presidente
seja eleito diretamente pela população. Na pesquisa, 47% dizem "sentir
vergonha de ser brasileiros".
O
presidente não tem legitimidade política. Ascendeu ao governo por um golpe
parlamentar e jurídico, sem respaldo popular. Há "provas abundantes"
de que está envolvido em corrupção passiva, obstrução de justiça e organização
criminosa. Nove ministros estão implicados junto com assessores próximos já
descartados, parlamentares da base aliada, quase uma centena de deputados e um
terço dos senadores. A pesquisa revela que 65% dos brasileiros disseram
"não confiar" na Presidência da República e no Congresso Nacional.
Arranjo
entre a política rastejante e a economia vulgar
O
propósito declarado da conspiração que derrubou a presidenta democraticamente
eleita era "estancar a sangria" e realizar as reformas de teor
liberal exigidas pelo mercado. Esse arranjo conciliava os interesses da
"quadrilha mais perigosa do Brasil" e dos detentores da riqueza que
sustentam o governo em troca da ambiciosa "agenda de [suposta]
modernização do Brasil" formulada pela "equipe econômica dos sonhos
[deles mesmos]".
Entretanto,
as delações do dono do frigorífico implodiram o tabique construído às pressas
para estancar a sangria. As veias abertas afogaram o frágil arranjo entre a
política rastejante e a economia vulgar.
Como
se fosse possível, os ventríloquos do mercado, atordoados pelo imprevisto,
passaram a ensaiar malabarismos deprimentes e constrangedores para separar a
economia ("dream team") da política ("ala podre").
A
política vai mal, mas a economia vai bem
No
passado, um prócer da ditadura sentenciou que "a economia vai bem, mas o
povo vai mal". Hoje os sábios das finanças e seus porta-vozes não se
cansam de repetir que a economia vai bem, apesar de o País ser governado pelo
"chefe da quadrilha mais perigosa do Brasil", da gravíssima crise
institucional e da putrefação do sistema político e partidário.
A
economia vai bem, a despeito da taxa de desemprego ter mais que dobrado em dois
anos por conta das políticas de austeridade que provocaram a maior recessão da
história.
A
economia vai bem, mesmo com juros acima de mais de 10% ao ano – mesmo nesse
cenário recessivo, pelo terceiro ano consecutivo, e desemprego em alta –, uma
"aberração brasileira que virou chacota internacional, que inibe o
crédito, os investimentos e cria custos inacreditáveis para o próprio
governo", na correta avaliação de um empresário.
Não
é preciso ser economista para deduzir que se trata de empulhação. Não sabemos o
que acontecerá no dia seguinte, e ninguém tem a fórmula para tirar o país do
atoleiro que resultou da aventura antidemocrática que destruiu o futuro
imediato do país.
Nesse
cenário, o desprezo pela democracia é constrangedor. Dá sempre na mesma, se é
democracia representa os interesses gerais da sociedade ou os interesses dos
donos da riqueza. Vale tudo para impor o "consenso sobre as reformas de
que o Brasil precisa" e implantá-las a toque de caixa.
Vale
tudo, desde que a equipe econômica seja preservada, pois nela se reúnem os
únicos iluminados supostamente capazes de "proteger o País contra medidas
populistas" e encontrar saídas para a recessão resultante das ideias
desses mesmos atores, falsas saídas, as quais, por irônico que pareça, foram
acolhidas pela candidata vitoriosa em 2014.
O
que é bom para o mercado é bom para o país
Sem
desfaçatez e com aparente normalidade, os intérpretes do tal mercado arrogam-se
o direito de falar em nome da sociedade que eles desprezam absolutamente. Se
"todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", como reza o
primeiro artigo da Carta de 1988, soa como deboche a declaração do parlamentar
que a preside de que e que "a Câmara dos Deputados vai manter a defesa da
agenda do mercado".
Sem
base científica consistente, impõem-se reformas "para o Brasil não
quebrar, voltar a crescer e gerar emprego". Tanto faz se, no caso da
reforma tributária e da reforma previdenciária, elas sejam rejeitadas,
respectivamente, por 71% e 58% dos brasileiros. "Mas o mercado vai adorar,
porque o capitalismo não é antiético, é aético.
Dê-me
uma reforma da Previdência em que o dólar vai para R$ 3, e a Bolsa, para 75 mil
pontos. É uma forma de o capitalismo dizer gostei. Vocês aí embaixo do Equador
que se dividam para ver quem paga a conta. (...) O que o gringo quer do Brasil?
Ganhar dinheiro, quer comprar alguma coisa, e o que vocês estão fazendo lá não
me importa, vocês que moram no Brasil" – desdenha um desses intérpretes
(Valor, 23/6/17)."
Museu
de novidades
Escárnios
à parte, o fato é que no Brasil todo o poder emana do mercado, que o exerce
diretamente, ou por meio de representantes eleitos e porta-vozes travestidos de
economistas e jornalistas. O fato é que, em última instância, o golpe
jurídico-parlamentar é bem-vinda oportunidade para radicalizar o projeto
liberal derrotado nas últimas quatro eleições. Em trinta anos, não há nada de
novo no front. Parafraseando Cazuza, a conjuntura é "um museu de velhas
novidades".
Essa
construção inicia-se nos anos 1990s e prossegue com a "Agenda Perdida"
(2002-2003), com o "Programa do Déficit Nominal Zero" (2005); após
breve pausa, retorna com a "Agenda Brasil" (2015) e, de forma odiosa
e antidemocrática, aí está hoje, no documento "Uma ponte para o
futuro" –, que é uma negação do documento "Esperança e Mudança"
(1982), escrito pelo mesmo PMDB –, agora transformado em "programa de
governo" da coalizão espúria que está no poder. O mesmo projeto velho, com
nova roupagem.
A
ocasião faz o ladrão, diz o ditado popular. O golpe gera nova oportunidade, que
não pode ser perdida, para completar um trabalho de três décadas que as urnas
sempre rejeitaram.
Camisa
de Força
O
propósito do golpe é implantar até 2018, a arquitetura institucional ditada
pelas finanças. O golpe abriu uma oportunidade para impor uma camisa de força
que amarrará completamente qualquer futuro governante.
Os
propósitos são, em primeiro lugar, levar ao extremo a reforma do Estado
iniciada nos anos de 1990, tanto na infraestrutura econômica quanto na área
social.
Em
segundo lugar, reforçar a ossatura do "tripé" macroeconômico, que
deve culminar com a redução da meta de inflação para 3,5% ao ano, prevista nos
programas de governos derrotados em 2014, o que condenará o país a viver com
baixo crescimento e juros altos por longo período.
Em
terceiro lugar, destruir o Estado Social de 1988, pois "as demandas
sociais da democracia não cabem no orçamento". Privatizações, teto para
gastos não financeiros, ampliação da desvinculação constitucional de recursos
(de 20% para 30% do percentual de impostos da Desvinculação de Receitas da
União), Reforma da Previdência e da Assistência Social, terceirização
irrestrita, desmanche da legislação do Trabalho e Reforma Tributária a favor
dos mais ricos (além dos ataques recente ao FGTS e ao programa
Seguro-Desemprego), estão em curso, sob o rolo compressor do Congresso e contra
a sociedade, mas afinado com "a defesa da agenda do mercado".
Os
donos do Brasil jamais aceitaram os avanços sociais de 1988, fruto da longa
luta pela redemocratização do país. O "capitalismo" brasileiro não
aceita, sequer, conquistas mínimas da socialdemocracia europeia, aqui taxadas
de "populistas" e "bolivarianas".
A
agenda de reformas para a "modernização do Brasil" representa uma
oportunidade, tantas vezes negada pelas urnas, de mudar o modelo de sociedade
pactuado em 1988.
O
período 2016-18 pode ser tempo da radicalização do neoliberalismo no Brasil, o
que implica, dentre outras consequências, o fim do breve ciclo de restauração
democrática e de construção de uma embrionária cidadania social iniciada em
1988. O resto é sofisma e empulhação.
Com
Temer ou sem Temer não há legitimidade política e ética para uma ruptura de tal
magnitude. Sociedade minimamente organizada em termos de democracia eficaz
derrubaria o presidente da República, estancaria as reformas e faria cumprir o
que reza o artigo primeiro da sua Carta Magna.
Publicada originalmente no portal Carta Capital
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