Uma terceira geração de lideranças indígenas pode assumir o comando do movimento (Foto: Felipe Milanez) |
As
bombas jogadas pela polícia contra a marcha pacífica dos indígenas, em 25 de
abril, não foram suficientes para abafar os gritos de guerra. As fumaças do gás
lacrimogênio não tiravam o fôlego de quem corria pelos gramados da Esplanada,
transformados num campo de batalha.
E
não escrevo de forma retórica: observei os guerreiros com flechas correndo
contra a nuvem tóxica, em direção ao Congresso Nacional. Corriam com flechas
apontadas contra revólveres e espingardas. Nesse cenário, vi xavante com o olho
ardendo, tossindo, mas gritando de forma contínua e intercalada; um guarani
chutando as bombas; um jovem pataxó pegando uma bomba com a mão e lançando
contra os novos bugreiros uniformizados; um grupo pankararu cantando e dançando
o toré com tanta força espiritual que o lacrimogênio virou gelo seco em frente
ao Ministério da (in)Justiça.
A
força da mobilização vinha de quem sabe suspender o céu. Do carro de som
ecoavam cantos xamânicos, cantos de força espiritual e de proteção, cantos para
pacificar os inimigos. Eram velhos xamãs marchando ao lado de jovens guerreiras
e guerreiros; avôs e avós de braços dados com seus netos e netas.
Essa
foi a mais linda, a mais inspiradora e a mais estimulante de todas as 14
mobilizações do Acampamento Terra Livre (ATL), organizado pela Articulação dos
Povos Indígenas (Apib), em Brasília, no Abril Indígena. Este ATL 2017 não foi
apenas uma das maiores mobilizações políticas dos povos indígenas, com mais de quatro
mil lideranças do País todo, mas a mais jovem e inovadora, liderado por uma
terceira geração do movimento.
Na
segunda marcha, na quinta-feira 27, todos e todas viram quando um pajé lançou
um feitiço que desequilibrou o policial montado num cavalo. A juventude riu do
policial, e prestou reverência ao velho pajé. Me parece esse um maravilhoso
símbolo dessa construção coletiva do movimento indígena, no qual a nova geração
assume o protagonismo com um respeito que é raro de ser observado em outros movimentos
sociais.
Com
bombas, bala e cassetetes, as agressões físicas do governo Temer não
intimidaram quem pertence a essa terra. Apenas serviu para mobilizar e engajar
ainda mais a jovem resistência reunida em Brasília. “A bala de borracha e o
spray de pimenta que são lançados contra nós, ainda está muito longe de ser, de
representar, a violência que a gente vive nas terras indígenas. Todos os dias
os ataques, todos os dias os assassinatos”, disse Sonia Guajajara,
secretaria-executiva da Apib, em entrevista a Daiara Tukano, da Rádio Yandé,
num vídeo que bombou de visualizações nas redes sociais. “A luta é nossa e não
vamos recuar”, completou, na entrevista disponível na página da Yandé no
Facebook.
Bombas contra os indígenas. Só mais um episódio de violência (Foto: Felipe Milanez) |
A
Rádio Yandé, aliás, bombou e fez bombar muitas mensagens insurgentes: por
Whatsapp desde o campo de batalha, as informações de Daiara, Idjahuri Kadiweu,
Anapuaka Tupinamba e Naine Terena eram postadas à distância por Renata Tupinambá,
e rapidamente atingiam milhares de visualizações. Que lindo ver indígenas em
resistência numa batalha campal, junto de indígenas numa batalha midiática e
das narrativas.
Como
os velhos ruralistas sentados no poder usurpado irão calá-la se os indígenas
que a fazem não dependem de um centavo de anúncio do governo? A lógica da
comunicação da Yandé é diferente da lógica da imprensa que divide em anúncios
inescrupulosos o bolo do golpe, que se presta a propagandear contra direitos da
classe trabalhadora, a favor da reforma trabalhista e do fim da Previdência: a
Yandé é o novo jornalismo, descolonial, situado, comprometido. Informa o Brasil
desde o ponto de vista do indígena – e não desde o ponto de vista da Casa
Grande, do Capital, da linha de cima do racismo, da bolha do confinamento
racial do jornalismo brasileiro.
Esse
estúpido cenário de guerra produzido pelo autoritarismo do atual governo ao
menos serviu para ilustrar, em imagens que giraram o mundo, que vivemos em um
Estado de Exceção. Tal como explica Sonia, os povos indígenas vieram a Brasília
“dizer o que é uma democracia”. E foram recebidos com covarde truculência.
As
bombas que ecoaram na Esplanada assustaram muitos jovens e representaram um
rito de iniciação. Foi a primeira vez que Piray, jovem Awa Guajá classificado
de “recente contato” pela Funai, saiu do Maranhão. Ele veio para mostrar que
aqueles “isolados” ou de pouco contato, também devem ser ouvidos e respeitados.
Geraldino
Patté, do povo Laklãnõ/Xokleng, também saiu pela primeira vez do sul do Brasil.
Ele sabe muito bem de toda a história da violência dos bugreiros contra seu
povo, dos contos de atrocidade do Martinho Bugreiro. E agora, com sua irmã que
cursa mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina, investigam e
denunciam a tentativa de construção de usinas hidrelétricas no seu território.
Ele postou uma linda foto sua no Facebook, segurando uma lança: “A batalha é
grande, mas eu não desistirei dessa luta. Orgulho de ser indígena. Orgulho de
ser Laklãnõ/Xokleng”.
De
repente, nesse encontro, eu estava numa roda de conversa entre Geraldino e
Auricélia Arapium, que é uma intelectual orgânica do movimento Em Defesa da
Vida e da Cultura do Rio Arapiuns, liderança indígena, estudante de direito da
Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém. De norte a sul, era uma
luta por direitos, para denunciar o racismo institucional, o apagamento da
história. São indígenas que estão conseguindo furar o confinamento racial das
universidades brasileiras, e repensando a nossa história para projetar um novo
futuro.
Nessa
nova geração, emerge ainda um movimento feminista que deve chacoalhar o
pensamento no Brasil: são as xinguanas organizadas no movimento Yamarikumã, as
mulheres de Roraima, os movimentos com apoio da ONU Mulheres, rodas de debate e
plenárias das mulheres. Telma Taurepang, uma das mulheres que lideram essa onda
feminista indígena, anunciou a convocação da primeira Marcha das Mulheres
Indígenas, que vai acontecer em 8 de março do ano que vem. Anotem na agenda.
Idjahuri Kadiweu e Anapuaka Tupinambá: os índios fazem notícia (Foto: Felipe Milanez) |
Políticos
indígenas como o vereador xinguano Mutuá Mehinaku, do povo Kuikuro, de Gaúcha
do Norte, que é mestre em linguística pelo Museu Nacional da UFRJ, estão
assumindo o poder institucional com o intuito de transformar a representação e
radicalizar a democracia: "Temos que ocupar esse espaço da política. Chega
de falarem por nós, nunca nos representaram. Somos nós que temos que estar no
parlamento nos representando a nós mesmos", me disse Mutuá.
Quem
sabe um dia, em vez de grileiros e ruralistas, os eleitores e as eleitoras do
estado do Mato Grosso contribuam para o Brasil elegendo como deputados
brilhantes intelectuais indígenas, como Mutuá, para ajudar a construir um país
mais igualitário, justo e democrático.
O
encontro teve luta em múltiplos sentidos: a luta na Esplanada, a luta
intelectual na organização de comissões, de debates, a luta política com
deputados, senadores, e a recusa em receber ministros ruralistas do governo
Temer. Encontros que cruzavam realidades de Norte a Sul, povos geograficamente
distantes mas politicamente muito próximos, epistemologicamente vizinhos, lado
a lado a enfrentar o genocídio. Do Xokleng no sul do Brasil, aos povos que
vivem no Tapajós e na bacia do Juruena, todos e todas trocavam informações,
ideias e estratégias para enfrentar o barramento e morte de seus rios de vida.
Várias
lideranças que encontrei e conversei cursam mestrado, falam a língua, aprendem
na universidade e valorizam cada vez mais o conhecimento da aldeia. Sabem
também que a luta ensina, aprendem com o movimento indígena e com as vozes mais
antigas das aldeias. Esse encontro talvez tenha marcado a emergência de uma
terceira geração do movimento indígena.
E
o que é muito interessante, comentou comigo Ailton Krenak, grande liderança do
primeiro movimento nos anos 1980, e que não esteve dessa vez em Brasília, é que
todas essas gerações se reconhecem, com empatia, que não é comum, como ocorre
muitas vezes que uma nova vem desqualificar os velhos. “Há alguma herança no
sentido cultural, que distingue esse movimento indígena de outros movimentos. E
essas vozes não vão ser caladas. Não vamos nos calar, nem imobilizar nossa
capacidade de luta ante a força bruta dos aparatos de proteção do Estado
dominado pelo Capital sem fronteiras”.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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