Para
explicar a importância da igualdade entre gêneros para os homens, a socióloga
Eva Blay diz que sempre conta uma historinha. “Eu fazia a conta. Você [homem]
ganha R$ 20. A tua mulher ganha R$ 10. Quanto entrou na sua casa? R$ 30. Então
ficou faltando quanto? Quem ficou com esses R$ 10 [que estão faltando]? Quando
você joga essa pergunta: 'quem ficou com os R$ 10?' – e não foi nem você, nem
sua mulher nem sua casa – era fantástico”, disse, em entrevista dada à Agência
Brasil, na semana passada, no campus da Universidade de São Paulo (USP), na
sede do escritório da USP Mulheres.
Eva
prefere não falar de si, mas sua história de luta pelos direitos das mulheres é
longa. Socióloga e professora titular da Universidade de São Paulo (USP), Eva
Blay, 79 anos, foi senadora e atualmente coordena o Escritório USP Mulheres,
que trabalha para o enfrentamento da violência contra a mulher, para a garantia
da igualdade de gênero no Brasil e conta com apoio da Organização das Nações
Unidas (ONU).
Para
ela, o feminismo avançou muito ao longo dos anos, mas a consolidação dos
direitos das mulheres no mundo nunca foi, de fato, consagrada. “Na sociedade
não existe, nunca [houve] uma consolidação. O que existe é sempre um processo”,
destacou.
Na
entrevista, Eva fala sobre o surgimento do Dia Internacional da Mulher e diz
que a data remonta a várias lutas femininas.
Ela
destaca que a violência contra a mulher continua em todo o mundo, mas que no
Brasil a distorção é ainda pior. “O Brasil está em quinto lugar no assassinato
de mulheres”, destaca.
Confira
abaixo os principais trechos da entrevista:
Agência
Brasil: Como teve início as comemorações pelo Dia Internacional da Mulher?
Eva
Blay: O dia 8 de março não começou no dia 8 de março. Começou com a Clara
Zetkin, uma socialista que apresentou em um congresso socialista [2º Congresso
Internacional de Mulheres Socialistas], em 1911, uma proposta de um dia
internacional para as mulheres. Então, como socialista, ela queria uma coisa
geral. Naquela época, mais ou menos como agora, havia uma série de
dificuldades. Mas acho que, naquela época, a situação era pior. As mulheres não
tinham horário de trabalho. Então, trabalhava 12 horas, 15 horas, as crianças
trabalhavam. Quando as mulheres, naquela época, saíram às ruas com essa
proposta - ainda era época do czar - elas achavam, e aí já não eram as
socialistas, que podiam conseguir do czar um certo apoio, uma certa redução da
jornada, mas ele mandou a polícia para cima delas e foi um morticínio total.
Depois disso, sempre do ponto de vista político, as mulheres continuaram a
lutar por um dia de reivindicação, um dia de luta, não festivo. Mas em vez de
pensar em luta, o que a sociedade capitalista inventou? Vamos dar bombons e
flores. Ora, nós não queremos bombons e flores apenas. Venham os bombons e as
flores, mas não só isso. O que nós queremos é a igualdade de direitos e de
deveres como está na Constituição de 1988.
Agência
Brasil: E quais foram os avanços conquistados pelas mulheres desde então?
Eva:
Homens e mulheres são iguais perante a lei. E ser igual significa o que? As
mesmas oportunidades de estudar, de não ter limitações nas carreiras, de não
ter um teto de vidro que limita a ascensão das mulheres nas carreiras. Enfim,
uma mudança geral na estrutura da sociedade. E estou falando especialmente da
brasileira. Mas isso acontece em todas as outras sociedades. Por volta dos anos
50, essa reivindicação tornou-se o centro do movimento feminista no mundo todo.
Não era só socialista, era feminista, era suprapartidária. E o movimento
feminista incluiu todas essas reivindicações: a igualdade de direitos, a
igualdade sobre, por exemplo, na família, de a mulher poder dizer quem é seu
filho e quem é o pai do seu filho. Nós não podíamos fazer isso. A mulher, para
trabalhar, precisava de autorização do marido. Para viajar, precisava de
autorização. Ela não podia nem usar o próprio dinheiro. O movimento feminista
começou a trabalhar todas essas questões. E, de uma certa maneira, avançamos.
Avançamos do ponto de vista do direito, do ponto de vista da educação, as
mulheres se tornaram altamente escolarizadas comparando com os homens e muitas
foram para a universidade. O caminho da universidade é mais ou menos
heterogêneo. Nas carreiras que são das ciências chamadas duras ou exatas, temos
menos mulheres que homens. Mas estamos fazendo muita força para ampliar isso.
Eva:
Qual foi a área que não avançou? A violência. Na violência, nós não conseguimos
avançar. Ela continua. Na pior situação, há o assassinato de mulheres, a
violência dentro de casa, o estupro, o incesto. Tudo isso continua acontecendo
e esta é a área que a gente menos conseguiu avançar. Não só no Brasil como na
América Latina toda e no mundo, de forma geral. Mas aqui a distorção é muito
pior.
Agência
Brasil: Por que você diz que aqui é muito pior?
Eva:
Por causa do número de mulheres. O Brasil está em quinto lugar no assassinato
de mulheres.
Agência
Brasil: A senhora tem escrito artigos destacando esse momento que o mundo vive
com Trump [Donald Trump, presidente dos Estados Unidos] e Putin [Vladimir
Putin, da Rússia]. Como a senhora enxerga épocas como essa que parecem de
retrocesso?
Eva:
Acho que vivemos um momento em que há várias forças em atuação. Evidentemente,
quando você pega alguns grupos religiosos ou alguns indivíduos conservadores e
muito conservadores, eles não admitem os avanços que nós conseguimos. Tem um aí
que acha que a mulher tem que ser subserviente ao homem. Ou ele acha que o
casamento entre homossexuais é uma aberração. Não concorda com o aborto mesmo
em caso de anencéfalos. Até em coisas que já avançamos existem aqueles que
querem voltar atrás. Por isso, acho muito importante a gente nunca perder de
vista que o feminismo avançou, mas não consagrou os avanços. Você tem que estar
sempre alerta porque senão volta para trás. Vide o Trump que, nos Estados Unidos,
quem imaginaria que ia fazer as propostas tão retrógradas como ele está
fazendo?
Agência
Brasil: Há como recuperar o Dia Internacional da Mulher como um evento de luta?
Esse ano parece um ano especial, de mobilização e de greves, em nível
internacional. Tem como voltar a marca do dia de luta e não do dia de bombons?
Eva:
Acho que hoje em dia ninguém ousa pensar o Dia Internacional da Mulher como o
dia do bombom. Eu não vejo mais isso não. Se você andar pela rua ou mesmo aqui
pelo campus [da USP], o que você vê? Frases e cartazes assim [ela mostra
postais com frases que pedem o fim do assédio e da violência contra a mulher],
de que isso tem que parar. A violência sexual tem que parar. Elas podem ser
chefes no trabalho, elas podem andar como quiserem. Você deve apoiá-las. Isso
nós estamos fazendo. Agora, elas podem sair à noite sozinhas. Hoje você pega
uma adolescente e ela não aceita mais vir com essa conversa. Ela quer andar de
shorts sim, decotada sim e ninguém tem nada a ver com isso. Elas já absorveram
esse feminismo.
Agência
Brasil: Esse é o momento que você falou que está faltando, da consolidação do
feminismo?
Eva:
Na sociedade não existe, nunca [houve] uma consolidação. O que existe é sempre
um processo. É um processo que pode ir e voltar. Se você comparar hoje com, por
exemplo, quando conquistamos o direito ao voto, quando a Bertha Lutz [biológa]
lutou pelo direito ao voto, em 1920. Sabia que ela jogava panfletos por avião?
Quem tinha avião naquela época? Ela fez todo um trabalho de direito ao voto.
Então já era uma coisa forte. Havia muitas jornalistas feministas. Se você
pegar de 1850 para frente, o número de mulheres jornalistas e feministas era
muito grande. E depois teve um retrocesso.
Agência
Brasil: As adolescentes podem ser um novo [avanço]?
Eva:
Acho que estamos avançando. Por exemplo, na violência, a gente não superou os
limites. Mas a gente tem a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Mas agora
é uma questão de cultura. Você tem a lei, mas não tem ainda a cultura para
implantar isso.
Agência
Brasil: Tem alguma lei que pode ajudar?
Eva:
Lei não adianta. A lei ajuda. Ela pune. Isso é importante. Mas nós vivemos em
uma cultura patriarcal, uma cultura machista. Então, enquanto você viver em uma
cultura machista, você não consegue acabar com isso. Vou dar um exemplo. Tem um
fulano, que não quero citar, que matou a mulher e era uma pessoa notória porque
ganha dinheiro. Dois dias depois, o que vejo nos jornais? A seguinte frase:
'fulano de tal [ela não diz o nome, mas ela está falando do goleiro Bruno,
condenado por assassinato] está muito magoado com seus companheiros que não
foram visitá-lo na prisão'. Eu acho que
os companheiros não foram visitá-lo na prisão porque não estavam de acordo por
ele ser um assassino. Mas a mídia não está passando isso. A mídia está passando
'coitado, ele pagou o seu crime, então agora ele tem que ser recepcionado'.
Você colocar na mídia essa tentativa de dizer vamos recuperá-lo? A moça sumiu.
Nunca se achou o corpo dela.
Agência
Brasil: E as transgêneras?
Eva:
Gênero significa o seguinte: quando você está pensando em uma pessoa, em um
corpo, até agora a gente pensava apenas do ponto de vista biológico. Hoje não
pensamos mais do ponto de vista biológico. Hoje pensamos mais. Você vive em uma
sociedade e é a sociedade que tem uma cultura que vai ensinar para você a ser
mulher, a ser homem. Isso é gênero. Gênero é o contexto dentro do qual as
pessoas estão. Ao lado disso você tem homens que podem ser biologicamente
homens, mas não se sentem homens, se sentem mulheres. E vice-versa. Homens que
são bissexuais, mulheres que são bissexuais. Hoje tem os crossdresser [termo
que designa pessoas que se vestem com roupas associados ao sexo oposto], que é
uma coisa muito interessante, que são homens que se vestem como mulheres. É
raríssimo o caso contrário, mas tem também. Você vive em uma sociedade que,
felizmente, as coisas agora estão aparecendo. Em vez de o cara ficar enrustido
ou se suicidar, em vez de ele ficar sofrendo, hoje em dia não. Claro que não é
todo mundo que hoje em dia aceita essa decisão. Porque a pessoa é o que ela é.
Não importa. Desde os 3, 4 anos de idade, ela já começa a se definir. Ela não
está escolhendo. Faz parte dela essa atuação, essa maneira de ser.
Agência
Brasil: O 8 de março é um dia de luta também para a mulher trans?
Eva:
Elas podem, por que não? Acho que sendo um dia internacional, cada um vai para
a rua fazer o que quer.
Com
informações Agência Brasil
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