Nesse
dia de lutas pela possibilidade de existir mulher e ser feminino, provocadas a
integrar uma greve internacional geral das mulheres, a pergunta ecoa fundo e o
trabalho – ao menos como conceito – está por toda parte. Está por aí, mas não é
pacífico...
Como
aponta toda a tradição de um feminismo anarco-socio-comunista a noção
hegemônica de trabalho, o trabalho como atividade que gera valor monetário,
talvez seja uma das que mais contribua, à direita ou à esquerda, para a
invisibilidade social das mulheres e dos femininos, dificultando a afirmação
plena da nossa cidadania, bem como a sustentação da nossa condição de sujeitas,
da política aos nossos corpos.
Por
isso, em todo o mundo e por décadas, quando as feministas tratam do trabalho no
contexto de “sociedades salariais”, a primeira coisa que fazemos é anunciar,
para dissolver, a dicotomia entre a produção de coisas e a reprodução de
indivíduos.
Produção
e reprodução são aspectos indivisíveis do processo de acumulação. Quando
dizemos que o trabalho é irredutível à sua definição como trabalho que gera
valor monetário sendo, assim, assalariado, chamamos a atenção para a
apropriação não remunerada que o capitalismo faz do trabalho doméstico e de
cuidados realizado historicamente pelas mulheres.
Como
no capitalismo só se reconhece aquilo por quê se paga, diz um filósofo
italiano, o trabalho não remunerado das mulheres, embora produza valor –
porque, entre outras coisas, garante a sobrevivência e reproduz a mão de obra
–, evapora no ar, cai no esquecimento. E é apenas do esquecimento desse
trabalho e das mulheres que podem emergir propostas tão surreais quanto a de
equalização das idades de aposentadoria entre os sexos – e motiva o ato das
mulheres neste ano.
Na
Argentina, as mulheres iniciaram, em 2015, uma série de manifestações e um
movimento grevista contra o feminicídio, a violência de gênero e a
discriminação contra a mulher no trabalho. O movimento Ni Una Menos viralizou
rapidamente e recebeu adesões em vários países.
A
junção das lutas feministas a uma narrativa de greve internacional só ganhou
fôlego, no entanto, depois das mobilizações massivas de mulheres nos EUA
durante a posse do presidente Donald Trump – talvez o maior ícone do
neoconservadorismo neoliberal que enfrentamos hoje.
A
mensagem é clara: Se as mulheres param, o mundo para.
A
negligência do mercado em relação à esfera da reprodução não a torna menos
funcional ao capitalismo, apenas contribui para esvaziar o sentido da dignidade
humana relacionado aos femininos. Da mesma forma, a desqualificação do trabalho
das mulheres no mundo público não afeta a sua utilidade para a acumulação.
No
século XXI, somos as mais pobres dentre os pobres do mundo: Ocupamos os piores
empregos, recebemos os piores salários, nossos rendimentos são inferiores aos
dos homens mesmo quando desempenhamos funções equivalentes. Enfrentamos
múltiplas jornadas de trabalho, estamos absolutamente sobrecarregadas.
Como
se sabe, esse grande chamado à greve internacional de mulheres foi
protagonizado por intelectuais de enorme projeção, particularmente, Angela
Davis e Nancy Fraser. Evocar o imaginário da greve tem, no manifesto divulgado
pelas ativistas estadunidenses, o objetivo de reaproximar, como argumentam, o
feminismo das lutas de trabalhadoras/es.
Mas
o que seria, hoje, esse feminismo próximo das lutas das trabalhadoras em
oposição a um “falso feminismo”, empreendedor, neoliberal, como o define Fraser
em distintos momentos?
Para
pensar sobre esta pergunta, vale explorar um fenômeno do mundo do trabalho que,
surpreendentemente, embora não exatamente na forma de um elogio, tem as
mulheres como referência: a chamada “feminização do trabalho”.
Já
se disse que a tal feminização diz respeito à presença sempre crescente das
mulheres no mercado de trabalho desde a década de 1950.
Também
se vinculou o fenômeno a uma nova composição do trabalho relacionada ao modo de
produção e acumulação pós-fordista, à polivalência e à expansão do setor de
serviços, que exigiria um perfil mais “feminino” para o trabalho: criatividade,
networking, delicadeza, capricho, sensibilidade para o detalhe...
Sem
discordar da maior presença das mulheres no mercado de trabalho ou das
transformações contemporâneas na estrutura do trabalho, nem entrar no mérito de
como se dá essa inserção ou mesmo da construção identitária dos argumentos
anteriores, quero discutir a feminização como repertório da precarização das
relações de trabalho.
As
formas de produção no capitalismo contemporâneo se teriam feminizado ao
investir sobre a vida na sua totalidade, englobando da força (ou do corpo) às
subjetividades, desfazendo as distâncias entre o trabalho e o não-trabalho,
relativizando a fronteira entre a experiência produtiva no mundo público e as
relações afetivas da esfera do privado, comprimindo nosso tempo, desfazendo
redes de proteção, responsabilizando indivíduos socialmente conectados pela sua
própria sorte.
Ao
contrário do que pretendiam as feministas, a sobreposição do que antes era
identificado como um limite, tal qual na ideia de divisão sexual do trabalho,
entre a produção e a reprodução, hoje move o capitalismo, sem, no entanto,
abrir a possibilidade de um diálogo amplo sobre a necessária repactuação do
trabalho reprodutivo. Daí que a crise global atual nos mercados capitalistas
seja também uma aguda crise dos cuidados.
Somos
obrigadas/os a trabalhar cada vez mais, por cada vez menos. Reduz-se o tempo
para o cuidado, a batalha pela renda torna-se imperativa. O feminismo
empreendedor vem, de alguma forma, no rastro dessas transformações, o que não
anula o diagnóstico de captura de uma pauta progressista pelo capitalismo. Seja
como for, há aí um empoderamento que, cheio de contradições, permite
reivindicar maior presença feminina nos espaços.
O
ponto aqui é “enxergar o copo meio cheio”, ver o que há de potente e
transformador nos pontos sem nó deixados pela produção biopolítica neoliberal.
Há, então, que se avaliar qual saída, qual contraconduta, qual experimento
poético-estético é possível oferecer em seu lugar. É a greve?
Um
dos grandes desafios da organização social hoje é atualizar o sentido e a
prática da greve, inclusive, ousando transformá-la em outra coisa, considerando
que vivemos um momento distinto daquele que ensejou as lutas por este direito.
O modelo das ocupações parece interessante porque elas têm se mostrado
instrumentos eficazes para ampla mobilização e sensibilização.
A
luta feminista acumula experiência na construção de convergências
internacionais, intergeracionais e de lutas, isto é, tem certa abertura para
agregar às pautas específicas das mulheres demandas de todos os setores
oprimidos e marginalizados. Esse 8 de março chega, nesse sentido, como retomada
da melhor tradição do feminismo. Mas para seguirmos adiante será preciso
antropofagizar nossas velhas práticas, mudar a vida para mudar o mundo.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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