Um
grupo de trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prepara
uma série de notas técnicas sobre os impactos negativos que a reforma da
Previdência proposta pelo governo Michel Temer trará às trabalhadoras
brasileiras.
Além de estabelecer um mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de
contribuição, a proposta prevê desvincular as pensões do salário mínimo.
Outro
ponto crítico do texto enviado ao Congresso Nacional é a inclusão de mudanças
nas regras de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que também
deverá ser desvinculado do mínimo. O BPC é concedido a idosos e portadores de
deficiência em situação de pobreza, sem a necessidade de contribuição à
Previdência Social.
Em entrevista para a revista Carta Capital a economista Joana Mostafa, integrante do grupo de trabalho do Ipea, elencou os
pontos mais graves da reforma e criticou as mudanças nas pensões e no BPC.
Confira a entrevista na íntegra:
CartaCapital:
Qual é o ponto mais grave da reforma da Previdência, no que diz respeito às
mulheres?
Joana
Mostafa: O mais grave, para nós, é a mudança no tempo mínimo de contribuição
para acessar a aposentadoria, de 15 para 25 anos. No mercado de trabalho
brasileiro existem várias desigualdades. A rotatividade, a intermitência do
trabalho, a informalidade, tudo isso vai fazer com que a grande maioria dos
trabalhadores não consiga alcançar 25 anos de contribuição.
No
caso das mulheres, a divisão sexual do trabalho, em que elas assumem grande
parte dos afazeres domésticos, faz com que elas tenham mais dificuldade de
acessar o mercado formal e, portanto, mais dificuldade de acumular os anos de
contribuição. Hoje, 15 anos de contribuição já exclui muita gente. Para as
domésticas, por exemplo, é muito difícil. Aumentar para 25 anos vai excluir
ainda mais, só os mais estruturados no mercado de trabalho vão conseguir.
Nós
fizemos um cálculo e chegamos à conclusão que, no futuro, 47,3% das mulheres
não vão alcançar os 25 anos de contribuição. Para os homens, esse percentual
será de 30%. Então é claro que essa reforma vai afetar os homens também, porque
muitos sofrem com o trabalho precário, com a rotatividade, mas vai afetar ainda
mais as mulheres, justamente por conta da divisão sexual do trabalho.
CC:
O relator da reforma na Câmara, deputado Arthur Maia (PPS-BA), admitiu que a
proposta é injusta com a mulheres e sinalizou que o texto pode trazer alguma
diferenciação às mulheres que têm filhos. Qual sua opinião a respeito?
JM:
A todas as mulheres é atribuído socialmente um papel, que é o papel de
cuidados: cuidar da casa, das crianças, dos idosos, das pessoas com
deficiência. Não importa se ela efetivamente vai executar esses cuidados, se
ela é mulher, é atribuído a ela esse papel. A questão do cuidado é muito ampla,
não dá para considerar só o evento maternidade.
As
mulheres jovens, sem filhos, se deparam no mercado de trabalho com uma taxa de
desemprego, por exemplo, muito maior que a dos homens, porque o mercado já
efetiva o preconceito e a desigualdade de gênero no sentido de achar que essa
mulher, um dia, se afastará da sua carreira. Então eles preferem os homens,
porque aos homens não é atribuído esse papel social do cuidado.
CC:
Isso tende a mudar?
JM:
Tende a mudar, inclusive isso vem melhorando no Brasil. Mas nós estamos muito
distantes de países como os da OCDE [Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico], por exemplo, que foram inclusive citados na
justificativa da reforma.
Nós
somamos as horas de trabalho remunerado com as horas despendidas em afazeres
domésticos, que é tudo levantado pela Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios], e concluímos que as mulheres trabalham, em média, oito horas por
semana a mais que os homens. No final da vida laboral, quando elas se aposentam
após 22 anos de contribuição, em média, elas terão trabalhado 5,4 anos a mais
que os homens. É a partir desse dado que nós estamos sugerindo que os cinco
anos de diferença na aposentadoria por idade, de 60 para 65 anos, condizem
absolutamente com a realidade brasileira.
Nos
países da OCDE, as mulheres trabalham, em média, 3 horas e 11 minutos a mais
que os homens por semana, somando a jornada remunerada e a não remunerada. São
países desenvolvidos, onde há licença-maternidade de um ano, onde a licença
pode ser compartilhada entre homens e mulheres...
Esse
tipo de arranjo de uma regra do Estado faz com que você estimule uma divisão
mais justa de papeis no trabalho remunerado e no trabalho de cuidados. Mas não
é o tipo de política que está sendo proposto pelo governo, pelo contrário. O
governo só está propondo apenas tirar (direitos).
CC:
Algumas pesquisadoras defendem um período de transição, até que o País tenha
políticas públicas fortes para combater essas desigualdades. Como a senhora
avalia essa sugestão?
JM:
Eu acho interessantíssimo. Nós estamos trabalhando em uma proposta nesse
sentido. Hoje, as creches atendem apenas um terço das crianças entre 0 e 3
anos. Quem está cuidando (das que estão fora da creche)? A mulher. Três anos
fora do mercado de trabalho é muita coisa. Como ela volta depois? Volta de
forma precarizada, é óbvio que ela não vai chegar nunca aos 25 anos de
contribuição. Essa questão das creches é algo que a gente poderia colocar em um
indicador multidimensional, para uma regra de transição, até chegar perto dos
65 anos de idade.
É
muito importante falar do mercado de trabalho, porque a Previdência é uma
política absolutamente correlacionada ao mercado. Essa regra (aposentador por
idade aos 65 anos, para homens, e aos 60, para mulher) é a única política que
dá valor ao trabalho não remunerado, porque é uma compensação. Falar em
compensação parece ruim, mas não é. É uma compensação que dá reconhecimento,
que valora. Afinal, cinco anos de trabalho tem valor econômico.
CC:
O secretário da Previdência, Marcelo Caetano, já disse em entrevista que tanto
a desigualdade de gênero quanto a desigualdade de renda não devem ser
resolvidas pela Previdência...
JM:
É uma visão bastante tacanha. Se o Estado quiser simplesmente reproduzir o
mercado de trabalho, ele será altamente regressivo e irá reproduzir as maiores
desigualdades. Agora, o que a Previdência tenta fazer? Ela tenta distribuir os
rendimentos derivados da contribuição. Considerar apenas o poder contributivo
das pessoas seria transformar o sistema previdenciário em algo muito parecido com
o de capitalização. Não é o nosso caso. O nosso sistema previdenciário é de
repartição e solidário.
CC:
Estão querendo subverter a lógica do sistema, então.
JM:
Sim, porque estão privilegiando a outra perna, que é a perna da
sustentabilidade econômica e fiscal. Mas sustentabilidade fiscal vista também
de uma forma tacanha, baseada apenas nas contribuições. Porque é possível
financiar o sistema. Mas a forma como vamos financiar esse sistema é uma
decisão social nossa, do Brasil. Os brasileiros têm que decidir que tipo de
proteção eles querem e qual é o seu financiamento possível. Se esse governo não
dá conta de fazer o financiamento, isso é problema desse governo, não é
problema do Brasil.
CC:
Uma reforma é necessária, na sua opinião?
JM:
Reformar o sistema de Previdência é uma questão contínua, algo que temos sempre
que fazer. Nós, do Ipea, não somos contra isso, há vários parâmetros que
precisam ser reformados. Mas não do jeito como foi proposta, pois, no conjunto
da obra, a reforma é ruim, principalmente para as mulheres. Há o aumento da
idade e do tempo de contribuição e há, ainda, a proposta de desvincular as
pensões do salário mínimo. Hoje, 74% das pensões são adquiridas pelas mulheres.
E por quê? Justamente nós temos, ainda, uma divisão sexual do trabalho, onde a
participação das mulheres no mercado de trabalho é de 55%, enquanto a dos
homens é de 78%.
A
vida laboral das mulheres está muito ligada ao domicílio, e elas não conseguem
ter acesso à aposentadoria, a não ser via pensão. E essa reforma propõe
desvincular a pensão do salário mínimo. Estamos criticando muito esse ponto da
proposta, porque é um ataque em cheio às mulheres, por conta da divisão sexual
do trabalho.
Ao
não dar essa proteção social às mulheres que passaram a vida toda fazendo trabalho
de cuidados você está, no fundo, desestimulando mulheres e homens a continuar
com esse mesmo arranjo. O resultado disso é que, no futuro, possivelmente a
taxa de fecundidade cairá mais rápido ainda. O que vai gerar outro problema.
CC:
Nesse sentido, vocês também têm criticado as mudanças no Benefício de Prestação
Continuada (BPC), certo?
JM:
Sim, este é outro ponto que acerta em cheio as mulheres. Os homens também, mas
principalmente as mulheres, que são as mais atingidas pelas precarização no mercado
de trabalho e que não vão conseguir atingir os 25 anos de contribuição. Sem
aposentadoria, elas estarão desprotegidas e acabarão caindo no BPC. E é
justamente no BPC que o governo quer um ajuste: estão propondo a desvinculação
do salário mínimo e o aumento da idade, de 65 para 70 anos. É uma reforma muito
perversa.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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