Às
vésperas do Carnaval, o líder do governo Michel Temer no Senado, Romero Jucá
(PMDB-RR), soltou a língua ao comentar a ideia de os políticos perderem o
direito de serem julgados apenas no Supremo Tribunal Federal (STF). Para ele,
se o foro privilegiado acabar, juízes e procuradores deveriam ficar sem também.
Motivo: “Suruba é suruba”.
Suruba
é a palavra perfeita para descrever Brasília atualmente. Os poderosos perderam
o pudor, o ambiente é de alegre promiscuidade. Dizem o que pensam e defendem
para o País, sem vergonha de parecerem machistas, elitistas, hipócritas,
espertalhões. E ainda mergulham em conchavos para salvar a pele de todos e dos
amigos contra a Operação Lava Jato.
A
última semana foi uma apoteose desta suruba.
No
Dia Internacional da Mulher, 8 de março, Temer realizou um evento comemorativo
no Palácio do Planalto. Em discurso, disse “com a maior tranquilidade, porque
eu tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da
[primeira dama] Marcela, o quanto a mulher faz pela casa, o quanto faz pelo
lar, o que faz pelos filhos”.
Não
parou aí. “Ninguém mais é capaz de indicar os desajustes, por exemplo, de
preços em supermercados do que a mulher.”
Ao
optar por ressaltar o protagonismo doméstico das mulheres, o presidente expôs
sua convicção íntima sobre o papel delas na vida. Não que se encarregar dos
filhos, do lar e das compras seja indigno, mas por que enfatizar esse aspecto,
e logo com um minuto e trinta segundos do discurso de 11 minutos?
Está
mais do que explicado por que o peemedebista, 76 anos, montou seu ministério em
maio de 2016 apenas com homens (e brancos).
Longe
dali, na mesma quarta-feira 8, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ),
era pura sinceridade. Ao comentar com jornalistas a reforma trabalhista
proposta por Temer, chutou a Justiça do Trabalho: “Não deveria nem existir”.
Fez igual com a CLT: “Esse processo de proteção gerou desemprego”
O
que Maia quis dizer é que os empresários não conseguem pagar pouco a seus
funcionários, pois a Justiça e a legislação trabalhistas impedem, daí que “a
proteção gerou desemprego”.
Na
verdade, o que eles não conseguem é pagar ainda menos. O salário mínimo no
Brasil é de 937 reais. O rendimento médio de um trabalhador do setor privado,
1,7 mil reais. A renda per capita, de 1,2 mil reais mensais. Imagine-se quais
seriam esses valores se não houvesse Justiça do Trabalho e CLT. Ou como seria a
jornada semanal.
Detalhe:
como deputado, Maia ganha 33,7 mil reais mensais pagos com dinheiro público,
fora verbas indenizatórias etc. Vinte vezes o recebido em média por um
trabalhador, que ele acha protegido demais.
Na
véspera do Dia da Mulher, a Advocacia Geral da União (AGU), órgão sob a batuta
de Temer, conseguiu uma decisão judicial que é outra prova do pouco caso de
Brasília com os trabalhadores. O governo segue desobrigado de divulgar a “lista
suja” do trabalho escravo.
A
lista contém o nome de empresas flagradas com empregados em situação análoga à
da escravidão e multadas por isso. É tida pelas Nações Unidas como exemplo. A
vitória judicial da AGU foi uma vitória dos escravocratas do século XXI.
Os
fazendeiros, bancada forte no Congresso e aliada de Temer, odeiam a lista.
Sequer aceitam o conceito de “situação análoga à de escravidão”.
Os
ruralistas ganharam um reforço na equipe de Temer com a posse do deputado Osmar
Serraglio (PMDB-PR) no Ministério da Justiça na terça-feira 7 e ele logo exibiu
sua franqueza. Por exemplo: índio não precisa de terra. “Terra enche a barriga
de alguém?”, disse na Folha da quinta-feira 9.
Afirmou
ainda que “existem bandidos e bandidos” e que um deles “você olha nos olhos e
quer passar longe, é um potencial assaltante, criminoso”.
Se
“bandido” a gente reconhece pelos “olhos”, uma opinião incrível por si só, será
que Serraglio não notou nada no olhar maligno do deputado cassado Eduardo
Cunha, réu por corrupção e preso à espera de julgamento? No dia em que a Câmara
aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, inclusive defendeu “anistia” para
Cunha, ou seja, nada de cassar o mandato dele.
A
vitória da AGU contra a “lista suja” do trabalho escravo foi no Tribunal
Superior do Trabalho (TST), em decisão do presidente da corte, Ives Gandra
Martins Filho. O magistrado tem visão similar à de Rodrigo Maia sobre os
trabalhadores e a CLT. E também acha que Justiça do Trabalho só serve para
atrapalhar empresários.
Suas
opiniões sobre as mulheres são dignas de um discurso de Temer em data festiva.
“O princípio da autoridade na família está ordenado de tal forma que os filhos
obedeçam aos pais e a mulher ao marido”, escreveu em um artigo de 2012.
Gandra
Filho chegou ao TST em 1999 graças às maquinações de Gilmar Mendes, na época
chefe da AGU do governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje ministro do STF e
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Mendes tem se comportado como
verdadeiro advogado de Temer. Reúne-se com ele aos sábados e domingos e em
jatinhos da FAB. Tudo à luz do dia.
Enquanto
Temer exaltava o papel doméstico das mulheres, Mendes dizia à Reuters que se a
chapa Dilma-Temer eleita em 2014 for cassada no TSE, não há problema. Temer
poderia seguir no cargo candidatando-se de novo, só Dilma ficaria inelegível.
Por quê? “Evidente que o vice participa da campanha. Mas quem sustenta a chapa
é o presidente, o cabeça de chapa.”
Se
Temer não tem responsabilidade financeira com a chapa, por que então um jantar
dele no Palácio do Jaburu, em maio de 2014, com gente da Odebrecht, tornou-se
um drama para o peemedebista, a ponto de várias pessoas terem prestado
depoimento a respeito no TSE desde o fim do Carnaval?
Uma
delação a tratar do jantar veio a público em dezembro e complicou um assessor
especial de Temer na ocasião, José Yunes, amigão de longa data do presidente.
Yunes logo pediu demissão, a esbravejar que a delação era “fantasiosa”,
“abjeta” e que seu nome tinha sido jogado “no lamaçal”.
Dias
antes do Carnaval, no entanto, o próprio Yunes, um rico advogado e empresário,
rasgou a fantasia. Confessou publicamente em entrevistas que tinha, sim,
ligação com o jantar, o qual servira para Temer captar 10 milhões de reais da
Odebrecht. Mas tinha ligação na condição de “mula” de outro amigo de Temer,
Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil. Só isso.
A
tese defendida por Gilmar Mendes sobre Temer ser capaz de sobreviver política e
eleitoralmente mesmo que a chapa de Dilma seja cassada no TSE tem sido
discutida no PMDB. Seria essa a forma de contornar uma eventual derrota na
corte.
Em
entrevista ao SBT na segunda-feira 6, quem falou abertamente sobre isso, sem
enrubescer, foi o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), aliadíssimo
de Temer, de quem foi tesoureiro por muitos anos no partido de ambos. “A única
regra clara que se coloca é que o presidente Michel Temer pode ser, inclusive,
candidato novamente. Não se sabe se uma eleição direta, não se sabe se uma
eleição indireta.”
Na
noite seguinte à entrevista de Eunício, o aniversário de um jornalista reuniu
alguns figurões da República em um tradicional restaurante de Brasília, o
Piantella, que fechara as portas mas acaba de reabri-las. Entre os comensais, o
senador mineiro Aécio Neves, presidente do PSDB.
Após
aliar-se à Lava Jato para derrubar Dilma, o tucano parece outra pessoa. “É
preciso salvar a política”, disse ele no jantar, perante jornalistas. “Não
podemos deixar que tudo se misture”, é preciso separar dinheiro de propina de
um lado, e dinheiro de campanha de outro.
Claro.
Agora que Aécio e tucanos ilustres estão para ser tragados pela delação da
Odebrecht, “é preciso salvar a política”. A suruba em Brasília está aí para
isso.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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