Primeiro
apareceram os que acusaram Lula de pecado futuro: vai usar a morte da esposa
para se fazer de vítima.
Acusar
alguém de pecados ainda não cometidos é uma tentativa de fechar ao acusado uma
alternativa, de desqualificá-la de antemão: “vai doer, mas chorar você não
pode; tente, então, ficar quietinho”.
“Fazer-se
de vítima” é uma dessas expressões curiosas da alma brasileira, vez que quem
acusa o interlocutor de se fazer de vítima geralmente está fazendo o papel de
verdugo.
O
carrasco está barbarizando, mas, por favor, tenha compostura, “não se faça de
vítima”.
Depois
apareceram as condenações pelo “uso político do velório”.
Como
pode um sindicalista e político enterrar a própria esposa com um coração de
político e sindicalista?
Tinha
que ter havido discrição, silêncio.
Como
pode um sujeito enterrar a sua companheira de vida, cuja morte foi, no mínimo,
acelerada pelo desgosto e por acusações que, segundo ele, são injustas, sem
berrar, espernear, acusar?
Não,
o certo era ficar quietinho ou, se fosse mesmo para fazer drama, que se
cobrisse de cinzas, batesse no peito, em lágrimas, e gritasse “mea culpa, mea
maxima culpa!”.
Fosse
apenas questão de ser sommelier do luto alheio, até me pareceria razoável.
Afinal,
o Facebook é principalmente uma comunidade de tias velhas desaprovando as saias
curtas e os comportamentos assanhados dos outros. Mas, é mais que isso.
Pode
haver um aluvião público de insultos, augúrios de morte e dor, e difamação à
sua esposa, durante duas semanas, mas Lula não pode mostrar-se ultrajado ou
ofendido, não pode desabafar do jeito que pode e sabe, não pode espernear.
Em
vez do “j’accuse”, o certo seria a aceitação bovina do garrote, da dor, da
perda.
Em
vez do sindicalista e político, em um ambiente privado do sindicato, velando
entre amigos a mãe dos seus filhos, havia de ser um moço composto e calado.
Todo
mundo tem direito de velar os seus mortos como pode e sabe, exceto Lula.
Uma parte da sociedade
brasileira nunca se cansa de mostrar a Lula o seu lugar. E de reclamar, histérica,
quando ele, impertinente, não faz o que ela quer.
Tem
sido assim.
Lula
já foi insultado de analfabeto, nordestino, cachaceiro, ignorante e aleijado,
muito antes de ser chamado de corrupto e criminoso.
A
cada doutorado honoris causa de Lula choviam ofensas e impropérios porque ele
não tinha todos os dedos, porque era uma apedeuta, porque era um peão.
Qualquer
motivo para odiá-lo sempre foi bom o bastante para uma parte da sociedade.
Agora,
estamos autorizados a odiá-lo por mais uma razão: o modo como acompanhou a
agonia e como velou sua companheira.
Que
os cultivados me perdoem a analogia, mas isso me lembra a acusação feita em O
Estrangeiro, de Albert Camus, ao sujeito que não conseguiu chorar e sofrer,
como aos demais parecia conveniente e apropriado, no funeral da própria mãe:
“J’accuse cet homme d’avoir enterré sa mère avec un cœur de criminel”.
“Eu
acuso este homem de ter enterrado a sua mãe com um coração de criminoso”.
No
surrealismo da narrativa política brasileira, a história se repete: Lula deve
ser desprezado porque enterrou a esposa com um coração de político e
sindicalista e isso não está direito. Voilà.
Lula
nunca vai aprender o seu lugar.
Publicado
originalmente no portal Vi o Mundo
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