Marisa e Mino Carta em São Bernardo do Campo no ano de 1980 (Foto: Arquivo Pessoal) |
Neste
momento de dor extrema, Carta Capital está ao lado de Lula, e desta vez não é
por razões políticas. Tanto mais fortes as minhas, amigo leal e sincero do
casal há 39 anos. Nos últimos tempos, Marisa me vem à mente amiúde, e a vejo
moça que acena da porta de um bar enquanto o marido toma um derradeiro gole de
pinga com cambuci. E eu me vou a bordo de um carro da reportagem de IstoÉ. É
imagem nítida, bem gravada na memória, e alegre com um leve travo de
melancolia.
Conheci
Marisa pouco mais de um mês depois de minha primeira entrevista com Lula. Logo
o entrevistado convidou-me a visitá-lo em sua casa no alto de um morro, atrás
da fábrica da Volkswagen de São Bernardo, modesta casa térrea, no quintal
brincavam os filhos e um Dom Quixote esculpido em madeira campeava na estante
da sala. Lula mandava no sindicato, mas a mulher era a chefe da família.
Agrada-me
ter sido o primeiro jornalista a perceber o carisma de Lula, o extraordinário
tino político, o QI elevado. Começo de fevereiro de 1978, diretor de redação de
IstoÉ, dediquei a ele uma capa, cuja chamada dizia: “Lula e os Trabalhadores do
Brasil”. Resultava de uma visita ao sindicato, acompanhado pelo repórter
Bernardo Lerer, e de uma conversa de duas horas.
Quando
chegamos, o presidente veio ao nosso encontro, e às costas dele vi um quadro de
Pelizza da Volpedo, em tamanho natural, intitulado O Quarto Poder, e o pintor
não se referia à imprensa. Pareceu-me que Lula saíra da moldura para nos
receber. Um ano depois, quando da greve de 79, a primeira publicação a trazer a
personagem para as suas páginas com o devido destaque foi a revista Time.
Marisa
gostou muito da entrevista e a amizade nasceu ali. Conheci uma mulher firme e
centrada, dotada ao mesmo tempo de rara gentileza d’alma. Ótima mãe, esposa
impecável, não são palavras de ocasião. Encanta-me a origem italiana, que lá
pelas tantas lhe valeu um passaporte. Chamava a avó de nonnina e ambas
apreciavam pinga com cambuci.
Não
consigo imaginar Lula sem Marisa, companheira de mil batalhas. Recordo uma
tarde de outubro de 1989, tempo da campanha eleitoral das eleições
presidenciais, fui entrevistar Lula na casa do alto do morro, comigo estava o
perene parceiro Nirlando Beirão. Marisa nos ofereceu salgadinhos, e a cada fala
do entrevistado anuía com terna cumplicidade.
Recordo
uma noite de 1980, durante a greve que acabaria com a prisão de Lula, cativo
aos generosos cuidados do delegado Romeu Tuma, que lhe propiciava "lulas à dorée" fornecidas por uma cantina próxima na hora do almoço.
Todo
dia, uma viatura da polícia ia buscar Marisa e os filhos e os levava em visita
ao preso. Naquela noite, anterior de poucos dias à prisão, a casa de Marisa foi
invadida por um grupo de políticos encabeçado pelo senador Teotônio Vilela, ele
via na greve uma forma muito eficaz de enfrentar a ditadura, que mobilizara no
cerco à Vila Euclides, o estádio de São Bernardo em comício permanente,
brucutus, helicópteros e tropa armada para a guerra. Um cachorro entrou na
sala, saído do quintal, e passou a lamber os sapatos senatoriais. Chegou Marisa
e o enxotou com gesto rápido, quase na ponta dos pés, os dela e os do cão.
Muitas
lembranças, um baú repleto. Nunca esquecerei Marisa.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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