Mais
escolarizadas, mulheres ainda ganham menos do que os homens e fazem dupla jornada (Foto: Edilson
Rodrigues)
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Um
dos grandes assuntos em pauta ultimamente tem sido a polêmica proposta de
reforma da Previdência gestada pelo governo de Michel Temer. Na semana passada,
foi divulgada a notícia de que, para se aposentar com o benefício integral, o
brasileiro precisará contribuir por pelo menos 49 anos.
Pelas
novas regras que o governo pretende aprovar, o tempo mínimo de contribuição
será de 25 anos, mas, com o cumprimento desse período, o trabalhador terá
direito a somente 76% da aposentadoria, respeitando-se o piso do salário
mínimo.
A
cada ano de contribuição, será somado mais 1% ao cômputo, até completar 100%.
Ademais, a idade mínima passa a ser de 65 anos, independentemente do gênero do
contribuidor ou da contribuidora.
A
Previdência Social atua em cima das contingências que implicam a perda da
capacidade laboral dos contribuintes, tais como morte, acidentes, idade
avançada, desemprego e funções reprodutivas.
Atualmente,
as regras gerais da previdência social preveem que os trabalhadores têm direito
à aposentadoria se comprovarem o mínimo de 180 meses de trabalho (quinze anos),
além da idade mínima de 65 anos, se homem, ou 60 anos, se mulher. Para
conquistar o benefício integral, mulheres devem contribuir por 30 anos, e
homens por 35 anos.
Apesar
dos esforços do atual governo para legitimar a proposta de reforma da
Previdência como imprescindível para a manutenção do sistema da seguridade
social, a mesma tem sido bastante criticada por endurecer as regras atuais e
prejudicar o trabalhador que ainda não adquiriu o direito ao benefício.
A
despeito de inúmeras problemáticas dessa proposta, um dos pontos críticos do
projeto, mas pouco discutido pelos canais de comunicação, é a equiparação tanto
no tempo de contribuição, como na idade mínima de 65 anos para homens e
mulheres.
Falsa
igualdade
Talvez
por superficialmente se cobrir por um manto de justiça, ou talvez por não
termos um atual governo comprometido com as questões da mulher, esse ponto
parece estar passando batido nas discussões sobre a reforma da previdência. Mas
será que é realmente justo equiparar a idade mínima e o tempo de contribuição
dos trabalhadores e das trabalhadoras?
O
que, de início, pode soar como uma efetivação do princípio de que homens e
mulheres são iguais perante a lei, é, na verdade, um enorme distanciamento da
consagração da igualdade material entre os gêneros, de forma que esse projeto
se apresenta extremamente nocivo para as trabalhadoras, especialmente as mães
de família.
E,
justamente por se revestir de uma falsa igualdade, a questão está gerando
dificuldades argumentativas até mesmo para pessoas que se identificam com a
causa da promoção de igualdade de gênero.
Basta
um olhar um pouco mais crítico para se perceber o quão injusta é essa
equiparação. Afinal, ignora-se por completo o fato de que a mulher possui dupla
jornada de trabalho e ainda ganha menos do que o homem para exercer as mesmas
funções.
Uma
questão interessante que sempre é destacada quando se fala sobre a igualdade de
idades mínimas para obtenção de aposentadoria é acerca do fato de que as
mulheres têm maior expectativa de vida do que os homens.
Não
seria injusto, então, que as mulheres se aposentassem antes? Entendemos que
não.
Afinal,
essa realidade não acontece por conta de diferenças biológicas entre os sexos,
tampouco por desdobramentos da vida laborativa, e sim por questões culturais
decorrentes da construção dos gêneros.
Mulheres
têm mais preocupação e cuidados com sua saúde, atentando-se a tratamentos e a
prevenções de doenças, o que lhes prolonga a vida. O que é realmente importante
de ser analisado é a questão contributiva.
Dados
do IBGE (2014) apontam que as mulheres ainda recebem em média 27% a menos do
que os homens para desempenharem a mesma função. Além disso, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, em relatório próprio, divulgou que essa
disparidade salarial é praticamente o dobro da média mundial, colocando o país
num ranking bastante baixo em termos de igualdade de gênero.
Além
disso, a maternidade tem feito com que as mulheres se afastem do mercado de
trabalho em média cinco anos, principalmente pela falta de oferta de vagas em
creches públicas que possibilitem às trabalhadoras conciliar seu empregos com
os cuidados das crianças, após esgotado o prazo da licença-maternidade.
E
mesmo quando há creches disponíveis, há dificuldade de conciliar os horários de
trabalho com os horários restritos dessas escolas, que normalmente são em meio
período e coincidem com o horário comercial da maior parte das trabalhadoras.
Ainda,
dados de uma pesquisa realizada pelo PNAD (2011) mostram que embora as mulheres
no Brasil tivessem uma participação menor do que os homens em termos de horas
semanais no mercado de trabalho (36,9 e 42,6 respectivamente), elas dedicavam,
em média, 21,8 horas semanais às tarefas domésticas e de cuidado (reprodução
social), representando mais do que o dobro de tempo da dedicação dos homens,
com 10,3 horas semanais.
Desse
modo, acrescentando-se a média de horas semanais no mercado de trabalho, a
jornada dupla das mulheres brasileiras chega a 58,7 horas totais por semana,
contra 52,9 dos homens.
Ou
seja, colocando na balança, a jornada de trabalho feminino é de cinco horas a
mais do que a masculina, sendo que estas horas consomem e desgastam a
trabalhadora, acrescentam valor à sociedade, mas não são remuneradas.
E
se o projeto de reforma da previdência passar, essas horas sequer serão
computadas para fins de aposentadoria, gerando um encargo muito superior às
mulheres do que aos homens. Gráfico mostra a dupla jornada de trabalho das
mulheres
Dupla
jornada
As
regras atuais da previdência brasileira utilizam critérios que levam em
consideração essas diferenças biológicas entre os sexos, especialmente no que
se refere à reprodução.
Por
conta disso, a seguridade social garante benefícios diferenciados, que
assegurem a essas mulheres proteção no desempenho das funções reprodutivas sem
prejuízo do trabalho, como a licença maternidade e a estabilidade da gestante e
puérpera, por exemplo.
É
preciso ter em mente que a previdência é basicamente pautada na lógica do
trabalho, isto é, leva-se mais em consideração o valor moral sobre o labor do
que o aspecto contributivo do ponto de vista financeiro.
Tanto
assim o é, que a aposentadoria rural, por exemplo, apenas exige que se comprove
o tempo de serviço, sem que haja contribuições. Nesse sentido, é importante
ressaltar que o cuidado com os filhos é uma forma de trabalho essencial para a
reprodução e manutenção da sociedade, sendo essa atividade realizada majoritariamente
por mulheres, as quais exercem praticamente sozinhas e sem qualquer tipo de
remuneração.
Assim,
como é um trabalho não remunerado exercido em favor de toda a sociedade, sem
que o Estado atue de maneira eficaz para trazer algum tipo de alívio a essa
infindável tarefa, não seria razoável que se impusesse a incidência de
contribuição previdenciária.
A
divisão sexual do trabalho, nos moldes como se dá, beneficia a esta sociedade
estruturada no patriarcalismo. A mulher que se afastou do mercado de trabalho
para cuidar dos filhos está exercendo uma função imprescindível. E devido à
falta de estrutura e de políticas públicas universais, essa tarefa se mostra
irreconciliável com a contribuição formal para a previdência social.
A
regra que garante às mulheres o direito de se aposentar cinco anos antes do que
os homens, nada mais é do que uma compensação à mulher que trabalha na dupla
jornada, uma real tentativa de promover a igualdade material a partir do
direito e do ordenamento jurídico.
Esta
é uma interpretação comprometida com a promoção da equidade de gênero e uma
interpretação capaz de atender aos desígnios da Constituição Cidadã.
É
tratar os desiguais como desiguais na medida de suas desigualdades, a fim de se
alcançar o verdadeiro equilíbrio de direitos entre homens e mulheres.
Cumpre
destacar que esse tipo de ação afirmativa não se assemelha às discriminações
contidas em ordenamentos jurídicos, especialmente no direito do trabalho. Não
se trata de se utilizar justificativas da biologia para discriminar e afastar
mulheres do mercado de trabalho formal, como a proibição do trabalho noturno
feminino ou outras tantas.
O
que se vê no caso da previdência social é uma tentativa de remediar e reparar
uma desigualdade de gênero que já está ocorrendo e que não será capaz de ser
superada sem a devida atuação estatal.
Vale
dizer que não são todos os países que necessitam desse tipo de abordagem.
Muitos deles, especialmente aqueles que já alcançaram uma maior paridade entre
os gêneros, como a Noruega, utilizam-se primordialmente de critérios culturais,
e não biológicos, inclusive para essas questões reprodutivas, entendendo que há
responsabilidade compartilhada do casal pelos cuidados com familiares
vulneráveis, como os bebês.
Porém,
enquanto não chegarmos neste patamar de compartilhamento das funções,
precisaremos continuar mantendo políticas afirmativas que visem superar e compensar
a desigualdade entre homens e mulheres.
Nesse
diapasão, vale lembrar que as atuais regras da previdência social brasileira
são mais rígidas do que muitos países tidos como desenvolvidos, como a Bélgica,
Itália e França. Não podemos deixar que momentos de instabilidade fiscal e
econômica sirvam de motivo para restringir direitos sociais e promover
retrocessos.
O
Brasil é signatário da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana
para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher) e, por meio dela,
se comprometeu a promover a igualdade de acesso a direitos e a oportunidades
para suas cidadãs.
Claro
que as responsabilidades estatais não se encerram em medidas afirmativas como
esta.
Mas
este é um ponto de partida necessário e fundamental para que alcancemos de fato
a equidade de gênero. Quando conseguirmos repartir melhor as cargas familiares,
quando o Estado conseguir prover e garantir creches de qualidade para todas as
crianças da primeira infância, será possível reavaliar a situação
previdenciária das mulheres no Brasil.
Antes
disso, qualquer mudança no sentido de retração de direitos é um golpe contra a
dignidade das mulheres e contra o Estado de Direitos que estávamos construindo.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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