A mídia foi alvo dos manifestantes em ato contra o golpe em Porto Alegre (Foto: Daniel Isaia) |
Este
golpe não aconteceria sem a liderança da mídia. Ela foi a protagonista de
primeira hora. Desde cedo, os jornais se incomodavam com o que consideravam
“fraqueza” da oposição aos governos petistas e se dispuseram assim a
substituí-la.
Para
a ruptura institucional de agora, a mídia foi mais importante do que Eduardo
Cunha. Antes de Cunha reunir as condições para desatar o impeachment, a mídia
já tinha cerrado fileiras, engatado o revezamento de esforços complementares.
Foi
a mídia que, afinal, fustigou o governo na sucessão das manifestações de 2013,
orientou seus desdobramentos cada vez mais contrários às motivações iniciais,
amplificou e convocou a reação à Copa, encorpou a sublevação contra o resultado
das urnas de 2014 e sepultou o período de trégua pós-eleitoral.
Para
isso, foi preciso relativizar preceitos capitais do jornalismo, como o de dar
voz a todos os lados e, portanto, o da presunção de inocência. Foi nesse
ambiente que necessárias apurações
anticorrupção, um tema jornalístico, descambassem para a derrubada do governo
eleito, com base em pretextos.
De
duas uma, ou a mídia estrutura o golpe ou faz jornalismo, cuja essência, como
se sabe, é a reportagem. Faz jornalismo quem tem repórteres para apurar
notícias. O trabalho dos repórteres nutre-se da obtenção de informações por meio
de investigação independente, desligada de interesses de poderes oficiais e
privados.
O
trabalho exige a checagem prévia, autônoma e ponderada de informações por meio
do confronto com outras informações, chocando e registrando versões muitas
vezes contraditórias. Demanda o veto de informações suspeitas ou apressadas,
extirpando especialmente as que podem estar contaminadas por viés político.
É
por isso que o bom jornalismo é o jornalismo da dúvida. O bom jornalismo se
vale de fontes plurais, segue diferentes linhas de investigação, tenta
construir um retrato dos acontecimentos e suspeita sempre do que os poderosos,
de todos os lados, pretendem trazer ou
ocultar do conhecimento geral. O bom jornalismo age com contenção e toma
cuidados.
Não
foi isso o que aconteceu no Brasil, como registraram veículos da mídia
internacional. Os “furos”, informações exclusivas e inéditas, que são a razão
de ser do jornalismo investigativo, não existiram. Os meios de comunicação
foram veículos de “vazamentos”, ou seja, de informações obtidas, recortadas e
liberadas por três fontes principais, todas oficiais: o Ministério Público
Federal, a Justiça Federal e a Polícia Federal.
Em
estratégia assumidamente calculada de uso da mídia, eles comandaram o
noticiário. O ritmo da cobertura foi ditado pelas autoridades que também
regulavam a dosagem, os personagens em foco, o sentido e o contexto.
Para
os jornalistas, o grosso do trabalho chegava pronto. Não havia esforço maior de
checagem. Repórteres e editores procuravam mostrar-se confiáveis aos
fornecedores, que realizavam verdadeiros leilões de vazamentos entre os
veículos. Ouvir o outro lado passou a ser um preceito muito subversivo no
jornalismo atual. O grande jornalismo brasileiro rebaixou-se. Não é à toa que
inexistem profissionais homenageados na
cobertura dessa operação.
Contribuiu
ainda para esse desfecho um outro poder tão poderoso como desconhecido do
grande público: as empresas de estratégias de comunicação consorciadas ou não
com as associações de classe. Ambas constituem em seu conjunto máquinas de
influenciar cada vez mais a agenda dos veículos, impor seus temas, agir sobre a
temperatura das redes sociais, ditar os humores do país. A busca pela verdade
teve diante de si obstáculos inéditos. Fracassou, e o país fica então com as
consequências de um jornalismo transfigurado em seu oposto: mera ideologia.
*Mario
Vitor Santos é jornalista.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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