|
Piquet após vencer o GP da Hungria de 86 (Divulgação) |
Antes
de apresentar o tema, é impreterível lançar um pequeno aviso ao leitor: o
desígnio aqui jamais foi questionar o talento de Nelson Piquet. É preciso
esclarecer a proposta ao interlocutor porque acreditamos que a discussão, por
sua relevância, não pode ser mal interpretada. Logo, repetindo: o artigo não é
sobre o talento nem a relevância histórica do carioca, e sim seu reconhecimento
dentro do mundo da F1.
Dito
isso, uma reflexão: é curioso como, diferente de outros campos do esporte, os
fãs de F1 – e também jornalistas e pessoas ligadas ao paddock – levem em conta
os pontos baixos de um piloto para avaliar sua carreira. Vejam: no futebol,
Garrincha é reverenciado mesmo tendo terminado sua trajetória no Olaria,
fincado num banco de reservas sem joelho e sem perspectiva de vida. O mesmo
ocorre com Michael Jordan: ninguém, ao examinar a carreira de His Airness,
relembra seu fim discreto no Washington Wizards como um peso negativo –
provavelmente porque o auge estratosférico nos Bulls não deixa mentir o que ele
era capaz de cumprir no basquete.
|
Piquet com seu icônico Brabham #5 (Divulgação) |
De
qualquer forma, na F1, o fracasso, por menor que seja, é um enorme peso: quem
nunca desqualificou Michael Schumacher pelo fim melancólico na Mercedes? Ou
Ayrton Senna pelos anos de penúria na McLaren, em 1992? Os casos são inúmeros.
Na
condição de Piquet, o contrapeso na carreira são os abastados e infrutíferos
anos na Lotus e o nevrálgico episódio final em que foi derrotado por um jovem
Schumi na Benetton – um detrator diria, “enxotado” de Enstone pelo alemão.
É
por isso, dizem alguns, que Piquet nunca é relembrado nos polls ordinários
sobre os maiores pilotos da história. À exceção do Brasil, onde a imprensa,
desde sempre, instigou uma dicotomia – obscena, é preciso dizer – entre ele e
Senna, o nome do ex-Brabham nunca é lembrado. Quando mencionado, serve de
argumento para esfacelar a importância dos números: isto é, sim, ele tem três
títulos e 23 vitórias na F1, mas o que isso importa? É isso que investigaremos
aqui: o porquê de Piquet, fora de seu país, ser tão marginalizado pela crítica.
Homem
de uma escuderia só
Como
todo piloto de bom calibre, Piquet não demorou para impressionar na F1. Para se
ter uma ideia, ainda em sua primeira aparição pela Brabham, no GP do Canadá de
78, o carioca superou Niki Lauda e John Watson num treino com chuva, o que
impressionou Bernie Ecclestone o suficiente para pedir que ambos “pendurassem
os capacetes”.
No
ano seguinte, Watson trocou a Brabham pela McLaren e Piquet teoricamente o
substituiria como nº 2 no time. Mas ocorreu o contrário: o brasileiro subjugou
Lauda com frequência, domando o pesado e inconstante motor V12 do BT48 e terminando
o campeonato só um ponto atrás do austríaco. Quando Lauda deixou a F1, Nelson
automaticamente se tornou o ás nº 1 da escuderia.
|
Piquet com o Brabham-Alfa no GP de Mônaco de 79 |
Nas
temporadas seguintes, o brasileiro ingressou em sua melhor fase. Sagrou-se
vice-campeão em 80 e campeão nas temporadas de 81 e 83 – uma em cima de Carlos
Reutemann e outra contra Alain Prost. Em especial no último título, o mundo
assistiu ao melhor de Piquet: velocidade e talento constante aliados a uma
incomum sensibilidade mecânica – em uma época na qual as quebras eram parte do
cotidiano no esporte.
Nelson
parecia ser com sobras o melhor piloto do grid: mais veloz que Prost e Lauda,
mais técnico que Keke Rosberg e mais consistente que René Arnoux. Mesmo com a
fase de vacas magras para a Brabham em 84 e 85, continuou se destacando na
pista: na primeira temporada, conquistando nove poles e liderando a maioria das
corridas até onde o equipamento lhe permitiu; na segunda, mostrando
comprometimento com o trabalho como piloto de testes ao completar o equivalente a 75 GPs de testes
com o pneu Pirelli.
Foi
na mudança para a Williams, na temporada seguinte, que sua reputação começou a
ser questionada. Na Brabham, Piquet era visto como nº 1 absoluto, algo que às
vezes contava contra sua avaliação – mais ou menos o que se duvidava de
Schumacher nos anos 90, quando este dividia a garagem com pilotos medianos como
J. J. Lehto e Eddie Irvine.
Em
Grove, porém, ele sofreu uma forte oposição do inglês Nigel Mansell. E diante
das sete vitórias contra 12 creditadas ao britânico no fim de 87, muita gente
viu o terceiro título conquistado pelo brasileiro como “justo, apesar do
próprio Piquet”. A partir daí, o consenso – na imprensa inglesa principalmente
– era de que Nelson fora um piloto de “uma escuderia só”, tendo obtido sucesso
na Brabham somente porque as atenções estavam totalmente a ele. Mas isso é
justo?
Duelo
com Mansell e antipatia da imprensa inglesa
Como
discutimos acima, por volta de meados dos anos 80, Piquet era considerado o
piloto mais completo do grid – até mais do que Prost. Tanto que, ao se
aposentar da F1 em 1985, Niki Lauda avaliou o brasileiro desta forma:
“Durante
meus anos na F1, quatro pilotos deixaram uma marca forte para mim: Piquet,
[James] Hunt, [Gilles] Villeneuve e Prost. Se questionado quem considero o
melhor ás do mundo, não preciso ir muito longe: Nelson Piquet. Ele tem tudo o
que um campeão exige: estatura, firmeza, habilidade para se concentrar no
ideal, inteligência, força física e velocidade.”
Independente
de Lauda ser próximo ou não a Piquet, essa era, àquela altura, a visão
consensual no paddock. Por conta disso, a expectativa em relação à mudança do
brasileiro para a Williams em 1986 era muito grande. Afinal, diferente dos anos
anteriores, ele finalmente teria um equipamento azeitado para lutar pelo
campeonato.
|
Piquet, Prost e Mansell antes do GP da Austrália de 86
|
Mas
Piquet teve que lutar para se manter no mesmo nível de Mansell e, convenhamos,
a impressão a olho nu é de que o brasileiro tenha subestimado um piloto que,
fato, por séculos foi coadjuvante de Elio de Angelis – um ás excelente, mas não
no mesmo nível de um Prost ou um Lauda – na Lotus e demorou cinco temporadas
para abocanhar um GP.
Talvez
na avaliação de Nelson, como nos tempos de Brabham, a obrigação da Williams
fosse garantir uma posição para ele, bicampeão mundial, como número 1. Mas a
equipe deixou o pau comer solto, o que, para Piquet, até hoje é visto como uma
atitude pró-Mansell dentro de Grove.
Esse
comportamento defensivo do brasileiro lhe rendeu uma imensa antipatia da
imprensa britânica. Com um senso de humor perverso, beirando entre o encantador
e o rancoroso, Piquet muitas vezes vomitou as piores palavras à opinião
pública. Tornaram-se célebres seus comentários sobre a “feiura” da esposa de
Mansell e a suposta homossexualidade de Senna – produto da sua época, ele
endossava o discurso comum de que ser ou parecer gay era um comportamento
vergonhoso.
Era
tudo que a mídia queria para afiançar um sentimento de reprovação. E, como
vimos no caso Alonso x Hamilton em 2007, numa briga entre um inglês em ascensão
e um estrangeiro esnobe, tudo que a imprensa local precisa é do “gentio” na
lona. Foi o que aconteceu com a reputação do espanhol na McLaren e, de certa
forma, a de Piquet na F1. Daí surge um dos argumentos que sustentem o aparente
esquecimento do brasileiro pela imprensa britânica: ele foi tricampeão, é
verdade, mas seu caráter era de um rato.
Havia
também a impressão, mesmo dos jornalistas mais neutros, de que Piquet não
conseguia admitir o domínio de Mansell – em 1986, a briga foi equilibrada nas
qualificações (9 x 8), mas a vitória final foi do britânico. Há inclusive um
caso que contou contra a defesa de que o brasileiro tenha sido injustiçado no
time.
No
GP da Hungria de 86 (confira o compacto da prova abaixo), Piquet venceu o
páreo, mas pouco depois Mansell alegou que ele teria se beneficiado de um novo
diferencial no FW11. O dispositivo teria melhorado o equilíbrio do carro nas
curvas de baixa velocidade de Hungaroring. Como de praxe, rapidamente o
tricampeão foi acusado de não trabalhar para o time.
Em
sua defesa, Piquet e seu engenheiro Frank Dernie alegaram que Mansell testara o
novo componente, mas não teria se adaptado. De qualquer forma, o brasileiro pôs
uma volta no companheiro naquele GP, o que mostra a disparidade no equipamento
dos dois. Pode ter sido golpe de sorte? Pode. Mas a questão pegou muito mal
para Nelson e a fama de trapaceiro ecoou durante toda a temporada seguinte. Por
isso, quando Piquet conquistou seu terceiro título, ninguém festejou muito na
imprensa do Velho Mundo. E talvez nem aqui no Brasil, onde o fenômeno Senna já
começava a dar seus primeiros passos.
|
Piquet com o famigerado Williams-Honda FW11 (Divulgação) |
Impaciência
com a F1 e rápido declínio
Aqui
no Hemisfério Sul, Piquet é reverenciado como um gênio da mecânica, um prodígio
de alta sensibilidade com os movimentos do carro. Nos anos 80, porém, sua fama
era muito mais de um playboy sem grandes aspirações filosóficas no esporte –
apesar dos predicados citados acima. De fato, essa indiferença com o esporte
reluz nas declarações de Piquet até hoje: em todas as entrevistas, ele
demonstra não estar muito disposto a ir às provas ou acompanhar o calendário. A
verdade é que às vezes parece que ele mal sabe os nomes dos pilotos.
De
qualquer forma, há relatos de que, pouco após seu segundo título na categoria
em 83, Nelson quase abandonou o esporte. Aos 30 anos, ele já se mostrava
irritado com as viagens e a constante pressão por resultados. Além disso, nunca
esteve plenamente satisfeito com o que ganhava na Brabham e muitos dizem que o
principal motivo da mudança para a Williams se deu por causa disso.
O
ponto em que quero chegar é que, talvez entre 1983 e 1985, Piquet tenha perdido
o arrebatamento da coisa, o que afetou no seu desempenho. Seja pela
profissionalização cada vez maior, seja pelo alto número de GPs ou mesmo pelo
famigerado acidente de Ímola em 87, o brasileiro acabou engolido por Prost e
Senna no fim da década.
|
Piquet com o FW11 no GP da Itália de 87 |
Agora
vamos voltar ao ponto de abertura na nossa conversa. Lembram da compulsão do fã
de F1 por uma carreira plena, sem erros, como o Ideal – com letra maiúscula
mesmo, à moda dos filósofos alemães – na categoria? É justamente a partir daí
que o conceito de Piquet despenca.
Na
Lotus, a tendência era de um retorno aos anos de Brabham, de novo com uma
equipe inteira trabalhando unicamente para ele. Mas no primeiro ano o chassi
era ruim, o motor era OK, e no segundo, o inverso. Além do mais, ser derrotado
por Satoru Nakajima em Spa-88 definitivamente não condiz com o status de um
tricampeão, o que levou a outro motto frequentemente proferido pelos detratores
de Piquet: quando o carro era abaixo da média, ele não conseguia desenvolver.
O
renascimento na Benetton em 1990-91 provou que o talento do brasileiro não
havia desaparecido. Mas à esta altura já era tarde demais para reclamar um novo
título: o carro de Enstone era bom, mas não o suficiente para brigar de frente
a frente com McLarens e Williams.
Então
a F1 desistiu de Piquet. Como tudo na vida, não importa o passado, não importa
o currículo: em um determinado momento, você só precisa escolher quando precisa
se aposentar.
|
Nelson com o Benetton B191 em Silverstone-1991 (Divulgação) |
Conclusão
No
rol dos tricampeões, há cinco além de Piquet: Jack Brabham, Jackie Stewart,
Niki Lauda, Ayrton Senna e Lewis Hamilton. O britânico da Mercedes ainda está
na ativa, então vamos deixá-lo de fora da discussão.
Agora
por que Brabham, Stewart, Lauda e Senna são mais incensados e endeusados que o
brasileiro? E mais: por que pilotos sem o mesmo currículo, como Gilles
Villeneuve e James Hunt, rotineiramente aparecem na memória do fã com mais
louros do que o nosso antiherói?
Ao
menos na opinião deste autor, são dois pontos. Em relação aos tricampeões, lembrem que todos, fora Piquet, saíram no
auge. Senna obviamente foi acometido por uma fatalidade, mas Stewart e Lauda,
por exemplo, deixaram a F1 em seu auge. O escocês abandonou a carreira no ano
em que obteve seu último título, enquanto o austríaco, por sua vez, havia
conquistado seu caneco derradeiro no ano anterior.
Poderíamos
relacionar Piquet a Brabham? Talvez, os dois tinham até um estilo parecido. Mas
o australiano logrou este feito sui generis que é ter vencido um Mundial de F1
com seu próprio carro, em 1966. Esta façanha, por sua vez, já o distancia mesmo
de pilotos com mais títulos.
|
Piquet com o amigo Lauda, durante apresentação no último GP da Áustria |
Piquet
então acaba ficando para trás. Mas não é apenas uma mera questão de quem
terminou no auge ou não: todos os tópicos listados acima contribuíram para esta
certa indiferença em relação ao seu nome. A indisposição com a imprensa, a rivalidade
com Mansell, suas entrevistas alheias e dispersas, seu eterno ar blasé.
Piquet
nunca pareceu estar confortável com a F1. E, numa cultura ácida e em-si-mesmada
que é a cultura do Grand Prix, a resposta a um estímulo negativo sempre é o
esquecimento – que o digam nomes como Tony Brooks e Jody Scheckter, ases
excelentes que se desligaram do esporte e são ignorados pelo status quo da
categoria em premiações e cerimônias.
Apesar
disso, a história não é linear, como muitos pensam. E há espaço para revisão.
Talvez seja a hora do mundo compreender o caso de Nelson Piquet.
Publicado
originalmente no portal Projeto Motor