A
coordenação dos governos do Brasil e da Argentina no começo deste século, a
partir do pleno entendimento entre Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner,
e entre Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, tinha funcionado como o eixo para fortalecer
o Mercosul e expandir os processos de integração regional. Se constituíram a
Unasul e a Celac, assim como o Conselho Sul-americano de Defesa e o Banco do
Sul.
A constituição da Celac representava, finalmente, o fim da Doutrina
Monroe, cujo lema “A América para os (norte) americanos”, expressa na
Organização dos Estados Americanos (OEA), que agrupa todos os países da América
Latina e o Caribe, mais os Estados Unidos e o Canadá. Já a Celac agrupa apenas
aos países da América Latina e do Caribe.
A
mudança de governo na Argentina e o governo interino do vice-presidente Michel
Temer no Brasil estão promovendo uma reviravolta radical nesses processos. A
Argentina solicitou e foi aceita como observadora da Aliança para o Pacífico. O
ministro interino de Relações Exteriores do Brasil, José Serra, propôs rebaixar
as alíquotas do Mercosul. Ao mesmo tempo que a posse de Nicolás Maduro na
direção do Mercosul foi boicotada pelos governos da Argentina, do Paraguai e do
Brasil, a tal ponto que a reunião que deveria se realizar para a posse do
presidente da Venezuela foi cancelada. Maduro assumirá, mas com um Mercosul
esvaziado.
Tudo
caminha na direção da preparação da possibilidade de enfraquecer de tal maneira
o Mercosul, afim de permitir que países membros dele possam ter acordos
bilateriais com os outros países, muito particularmente com os Estados Unidos.
Paralelamente, os governos da Argentina e do Brasil mudam posições históricas
assumidas por seus governos, na direção de posturas próximas daquelas dos Estados
Unidos. Foi o caso da posição do governo Mauricio Macri em relação às Ilhas
Malvinas, praticamente abandonando a reivindicação de que as ilhas sejam
argentinas. O mesmo caso da posição do Brasil em relação à Palestina e a
Israel, reaproximando-se deste e distanciando-se daquele.
Tudo
soa como música aos ouvidos dos Estados Unidos. Do maior isolamento que havia
vivido em relação ao continente, Washington passa a contar como aliados os três
maiores países do continente , com o Brasil e a Argentina somando-se ao México.
É
a situação da qual os Estados Unidos gozaram na última década do século
passado, quando praticamente todos os países do continente tinham aderido, de
forma totalmente subalterna, à condução norte-americana. Foi baseado nessa
situação que Washington passou a implementar a Área de Livre Comércio das
Américas (Alca), que estenderia para todo o continente a relação que os Estados
Unidos já tinham com o México e o Canadá, além de tratado bilateral de livre
comércio, já assinado com o Chile.
O
livre comércio é uma relação em que são canceladas todas as formas de proteção
dos mercados internos, situação que favorece, obviamente, à economia mais
forte. Nenhum tipo de proteção ambiental, por exemplo, é possível, porque
cercearia o livre comércio, a livre circulação de capitais, o direito de
investimento por parte de empresas estrangeiras ao se querer estabelecer formas
de licença ambiental. Tampouco seriam possíveis políticas de cotas, porque
alterariam a livre concorrência entre todos os candidatos em igualdade de
condições.
A
Alca estava na sua fase final, cabendo aos Estados Unidos e ao Brasil
concretizar os acordos, quando Lula foi eleito presidente e mudou a política
externa brasileira. O Brasil obstaculizou a assinatura da Alca, privilegiando os
processos de integração regional, em primeiro lugar o Mercosul. Assim a Alca
foi inviabilizada. Os Estados Unidos passaram a desenvolver acordos bilaterais
com vários países do continente, entre eles o Peru, a Colômbia, o Panamá e a
Costa Rica.
O
Chile, a Colômbia, o Peru e o México constituíram a Aliança para o Pacífico,
como alternativa de governos neoliberais ao Mercosul. A aproximação da
Argentina desse bloco e um caminho similar que o governo golpista do Brasil
poderia assumir, caso o golpe se concretize, mudaria radicalmente a
configuração política do continente, a favor do neoliberalismo, do livre
comércio e das posições subordinadas aos Estados Unidos.
Os
discursos dos governos argentino e interino do Brasil já apontam para a
retomada da posição tradicional de voltar a ser o pátio traseiro do império.
Ganha assim mais importância ainda o desenlace da crise brasileira. Se o golpe
se consolida, esse movimento se sedimenta e governos como os do Equador, da
Bolívia, da Venezuela ficarão isolados, com ameaças reais contra seus governos
atuais. Se, ao contrario, a democracia triunfa e o Brasil volta a assumir suas
posições anteriores de soberania externa, haverá um contrapeso às posições
argentinas, e aqueles governos poderão contar de novo com um forte aliado no
continente.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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