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Kleber Mendonça Filho e sua equipe denunciam atual situação política no Brasil em Cannes (Foto: Yves Herman) |
A
sessão oficial de Aquarius na última terça-feira, (17/05), no Grand Théatre Lumière
certamente entrará para a história como um dos momentos mais importantes do
cinema brasileiro no Festival de Cannes. O gesto do diretor Kleber Mendonça
Filho e sua equipe, diante dos olhos e lentes da imprensa internacional, de
erguerem cartazes denunciando a atual situação política no Brasil, emocionou a
plateia brasileira presente na estreia mundial do longa.
Para
além dos contextos históricos e políticos, que certamente fortalecem o filme e
o dão uma leitura imediata muito especial, Aquarius é cinema de primeira
qualidade, primoroso em sua construção estética, estrutura narrativa e munido
por uma atuação fabulosa de Sonia Braga, cuja entrega à protagonista Clara é de
uma intensidade arrebatadora.
Seria
tarefa difícil falar de Aquarius sem fazer alusão à O Som ao Redor (primeiro
longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho), já que nos dois filmes o
pernambucano toca em temas centrais à experiência social contemporânea e faz um
recorte preciso das divisões e tensões de classe no Brasil. É igualmente
inevitável deixar de reparar que em ambos os longas, ambientados na mesma
cidade do Recife, os personagens/arquétipos parecem reprisar seus
papéis/funções (inclusive com boa parte do mesmo elenco), confirmando a
tendência de Kleber em explorar um universo fílmico muito próprio e autoral.
Na
história, Clara (Sonia Braga) é uma jornalista de música aposentada que reside
no último edifício de estilo antigo da praia de Boa Viagem. Ela também é a
última moradora a permanecer no prédio que, vítima da especulação imobiliária e
investidas agressivas de uma construtora, tem seu futuro ameaçado. A
imobiliária Bonfim (reparem na ironia do nome) quer derrubar o Ed. Aquarius
para construir um “Novo Aquarius”, mas tem como grande obstáculo a resistência
de Clara, que se recusa a abandonar o antigo apartamento e todo o mar de
memórias contido nele.
O
rigor na composição dos enquadramentos dá um visual classudo ao filme,
remetendo a um tipo de cinema do repertório pessoal de Kleber Mendonça Filho,
identificado, como ele mesmo confessou em coletiva à imprensa após a exibição,
com o cinema americano da década de 1970. Tela larga cinemascope, zoom in, zoom
out, grua, grandes planos gerais, tudo isso ao som de canções marcantes de
Roberto Carlos e Queen, onipresentes na narrativa, povoam a estética de
Aquarius de forma muito orgânica.
Sonia
Braga disse, em conversa com um pequeno grupo de jornalistas brasileiros, que
identificou muito de sua própria personalidade em Clara ao ler o roteiro, e que
o processo de transformação foi especialmente emocionante, numa simbiose muito
rica entre atriz e personagem. Essa naturalidade com que Sonia interpreta a
protagonista fica evidente na tela, suas falas, silêncios e fisicalidade são
muito críveis, realistas, quase palpáveis.
Aquarius
é uma grande síntese do Brasil atual através do estudo de uma personagem rica e
instigante. Trata-se de um filme necessário em tempos sombrios, um verdadeiro
grito de resistência.
Pedro
Azevedo é critico de cinema, curador do Cinema do Dragão-Fundação Joaquim
Nabuco
Publicado originalmente no portal O Povo Online