Deputados anti-Dilma erguem placas "Tchau, querida": o patriarcado se move (Foto: Antonio Augusto) |
O
termo realpolitik refere-se à política feita a partir de considerações práticas
em detrimento de noções ideológicas, mas o termo é comumente utilizado de forma
pejorativa para indicar políticas coercitivas, imorais ou maquiavélicas.
Proponho
um desdobramento do conceito para aplicação no nosso atual cenário político:
vivemos a era da surrealpolitik, na qual democracia é o que se quer ainda que
alguns dos caminhos para chegar nela sejam antidemocráticos, que as famílias
dos parlamentares apareçam como justificativa para votar a favor de um novo
governo feito pelo povo, e que uma cusparada dirigida a um defensor declarado
da ditadura cause mais ultraje do que seu discurso...
A
maior parte da representatividade política global é marcada maciçamente pelo
gênero, classe e cor dos candidatos e representantes eleitos. Até aí, nenhuma
novidade, e no Brasil a configuração não é diferente: no poder, a maioria é de
homens brancos e ricos.
Sabe
como as feministas chamam o paradigma que normaliza que instituições de poder
sejam regidas por homens? Patriarcado. É o patriarcado que o feminismo
denuncia, expõe, critica, resiste, e contra o qual luta.
Frequentemente
a palavra “patriarcado” vem seguida de outras palavras, como “heteronormativo”
e “branco”. Esta tríade sintetiza um conjunto de estruturas institucionais que
organiza nossa sociedade, e que tem outros eixos. Mas o patriarcado
heteronormativo branco existe, e é incontestável: basta observar os corpos e
discursos de quem ocupa o maior número de assentos nos cargos mais altos de
poder político, econômico, simbólico e social.
O
feminismo aponta os ritos do patriarcado como quer que eles se manifestem, e a votação
acerca da abertura do processo de impedimento de Dilma Rousseff que ocorreu na
Câmara no domingo 17 foi indubitavelmente patriarcal.
Na
sessão, uma maioria esmagadora de homens brancos, ricos e (ao menos
declaradamente) heterossexuais, ofereceu seu sim a um novo governo do povo com
discursos contraditoriamente individualistas. Pela minha família, por deus,
pelos meus. Pela mesma coisa de sempre. Pelo que é meu.
A
proporção de homens e mulheres na sessão, aliada aos valores explicitados nas
justificativas, acabou por nos oferecer o espetáculo da transmissão do patriarcado, ao vivo e
em rede nacional. E quem assistiu viu: foi mimimi puro. Quanta ironia.
Um
dos deputados chegou a declarar o seguinte: “Para me reencontrar com a
História, voto sim". Esta fala é muito significativa quando o presidente é
uma presidenta. Com o que, exatamente, este senhor quer se reencontrar?
E
aquele outro deputado, também branco e muito rico cujos filhos ocupam um
sem-fim de cargos políticos, que dedicou seu sim ao golpe de 1964? A cusparada
entre homens vira novela de meme e debate do dia. Surrealpolitik patriarcal.
Se
o que está se desenvolvendo vai ficar marcado na história como golpe, com dor
ou alívio logo ficará certo. Mas um golpe já é certo: este, mais um dos que
recebemos do patriarcado heteronormativo branco.
O
“tchau, querida” é extensivo a todas nós.
Além
dos horrores misóginos, racistas, homofóbicos e fascistas que compuseram uma
parte muito significativa dos discursos do sim durante votação, uma profusão de
memes jocosos sobre o que acontecia na noite invadiu as redes durante a
sessão.
O
meme é a linguagem por excelência das redes sociais, um favorito da internet.
Memes são especialmente bons no Brasil, onde fazemos chacota e deboche de tudo,
e rapidamente. O compartilhamento de memes durante a votação própria não
surpreende, mas dado seus conteúdos e o que ocorria, revelaram-se a falta de
atenção e o peso seletivo que se dá para discursos de ódio.
A
maior parte da produção feminista sobre política foca em atos e falas
misóginas, no poder de significação das palavras, e em alertas sobre discursos
de ódio e o que acontece quando eles se materializam.
Expomos,
por coerência, ataques misóginos direcionados a todas as mulheres. Rousseff vem
sendo alvo constante de ataques misóginos de toda sorte, mas esta semana mesmo
– que semana – saiu uma matéria na
revista Veja sobre Marcela Temer, enaltecendo-a amplamente por ser “bela,
recatada e do lar”.
Ela
é bela, talvez recato seja seu estilo, e do lar, bom, é elogio, mas isso não é
sobre ela, e sim sobre marcar quais são os o espaços onde as boas mulheres
pertencem.
Demonstração
da permanência do machismo institucionalizado nos meios de comunicação, que
elogiam mulheres com adjetivos que denotam subserviência aos valores do
patriarcado. Haja #greloduro.
Mulheres
não têm equidade política, social e econômica, e coisas como a violência
material e simbólica de gênero, ou as barreiras institucionais à nossa
autonomia corporal, são formas de manutenção do paradigma patriarcal.
Patriarcado
é o sistema, misoginia é a indicação de sua existência, machismos são seus
atos. Na linguagem, no simbólico onde circulam informação e poder, encontramos
evidências de todos.
A
concepção de deus e família invocada na votação, por exemplo, existe no
feminismo, e existe lutando para não servir de bandeira para promoção da
violência nem manta que a acoberte. Feministas: exposição do patriarcado,
sempre de dentro dele, analisando todos os seus códigos.
A
conclusão é que a opressão das mulheres é, apesar das diferenças materiais e
simbólicas entre culturas, uma constante.
Imagino
que muitos dos que creem que a saída de Rousseff seja o melhor para o País
tenham se envergonhado com o que assistiram. A comemoração efusiva do resultado
adicionou mais uma camada de surrealismo à nossa política. Visto o que vimos,
não parece haver o que celebrar.
Mas
venha o que vier, de nossa parte é garantido: seguiremos falando e denunciando,
como fazemos há tempo. Seguiremos expondo o patriarcado, sua linguagem, seus
códigos, seus instrumentos de propaganda, seus métodos, e suas consequências,
apesar de quaisquer binarismos ou surrealpolitik que nos atravesse.
Falamos
já há muito, com experiência, dados, estudos e textões sem fim, sobre as causas
e consequências graves que os horrores da seara do simbólico têm quando a
materialidade de seus discursos se expressa na violência brutal contra corpos
que dissentem.
Falamos.
Falar é um modo de resistir. Hesito em finalizar o texto com isso, mas dada a
surrealpolitik patriarcal, não custa torcer para que seja possível poder
continuar falando livremente.
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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