A
cobertura jornalística das manifestações do último domingo e da sexta-feira em
boa parte dos veículos de comunicação, especialmente a rede Globo e a Globo
News, confundiu gravemente o jornalismo com a propaganda. Vejamos alguns
exemplos disso.
Nas
manifestações do domingo (a favor do impeachment), houve transmissão ao vivo
por esses canais de TV durante o dia inteiro, quase sem interrupções. Nas manifestações
da sexta-feira (contra o impeachment), o foco estava nos estúdios e nas falas
de âncoras e repórteres, com flashes e breves transmissões desde os locais das
manifestações disputando o tempo com outras notícias.
O enquadramento das
imagens, no domingo, era o mais favorável e permitia ver que tinha muita gente,
enquanto na sexta-feira, a câmera estava sempre muito perto ou muito longe,
produzindo o efeito oposto.
Em
algumas cidades, inclusive, as imagens mostraram o momento em que as pessoas
“estão começando a chegar” e, tempo depois, o momento em que “a manifestação já
acabou”, omitindo o momento mais importante: quando a manifestação estava
acontecendo. No domingo, esse foi o momento privilegiado.
Nas
manifestações do domingo (“atos espontâneos da cidadania”), os manifestantes
eram protagonistas, ou seja, tinham direito a falar, a dizer por que estavam
ali. Nas manifestações da sexta-feira (“manifestações governistas”), essa
narrativa era assumida pelo cronista. E alguns fatos relevantes que faziam
parte da notícia não foram ditos: diferentemente do domingo, na sexta-feira não
houve catracas liberadas no metrô de São Paulo; pelo contrário, a “falta de
troco” demorava as pessoas que queriam viajar.
Contudo,
o momento mais vergonhoso foi quando começou a fala do ex-presidente Lula.
“Estamos com problemas no áudio, vamos pedir ao nosso repórter que conte o que
está acontecendo”. Como assim? Você pode amar ou detestar o Lula, pode
acreditar ou não no que ele diz, ou pode (como eu espero que você faça!) fazer
uma leitura crítica, mas para isso você, cidadão, cidadã, tem direito a
ouví-lo! Como é possível que a fala dele não tenha sido transmitida ao vivo?
Qual
é o critério de “notícia”? (Vale aqui fazer uma ressalva: a Band News
transmitiu o discurso; pelo menos a audiência desse canal teve seu direito a se
informar respeitado). Passamos dois dias inteiros assistindo sem parar pela
televisão, em repetição continuada como no velho cinema, às conversas privadas
do ex-presidente (uma espécie de Big Brother involuntário do qual ele não sabia
que estava participando) e agora não temos direito, como audiência, público e
cidadania, a ouvir o que ele diz num comício com cerca de cem mil pessoas na
avenida Paulista? Não é notícia?
Qual
é o medo? Deixem as pessoas assistirem tudo e tirarem suas conclusões sozinhas!
Até porque, diferentemente do que a narrativa da oposição de direita, dos
principais veículos de comunicação e também do governismo pretende instalar,
não há apenas dois lados nessa história. A realidade é muito mais complexa e
não podemos reduzir a atual conjuntura a uma opção entre adesão ao governo e
adesão à direita tradicional.
Tem
muita gente que, como eu, milita na oposição de esquerda ao governo Dilma mas é
contra o impeachment porque, até o momento, não há provas concretas que
justifiquem esse processo que está sendo conduzido de forma ilegítima por um
presidente da Câmara investigado pelo STF por corrupção e lavagem de dinheiro,
e porque é a favor da democracia! Muitas dessas pessoas foram ontem às ruas e
tanto a mídia quanto muitos governistas erram se acreditam que todos os
manifestantes eram simpatizantes do governo e do PT. Essas vozes não são
ouvidas nos telejornais, mas existem.
Eu
não vejo problema no fato de que cada veículo de comunicação tenha uma posição
política. Na maioria dos países, tem jornais de esquerda e de direita (no
Brasil, infelizmente, não há esse pluralismo), mas o que não pode é a narrativa
enviesada não deixar lugar para a notícia. O jornalismo precisa informar e,
depois, se quiser, pode dar sua opinião, deixando claro que é opinião. É a
diferença entre a notícia, a coluna e o editorial.
A
minha pergunta é: cadê a notícia? Cadê o jornalismo?
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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