O
novo atentado terrorista ocorrido em Paris, como era de se esperar, reforça o
discurso antiterror do Ocidente, o qual, na prática, significa mais o
endurecimento de suas restrições e de suas retaliações em territórios onde
supostamente estão seus agressores, do que propriamente a provisão de mais
segurança para seus habitantes e visitantes.
As
leis antiterrorismo possuem peculiaridades muitas vezes perigosas e é
importante atentar ao Projeto de Lei sobre o tema que tramita no nosso
Congresso, já votado no Senado, e que, sob o calor do momento, pode acabar
sendo aprovado sem uma análise mais detida e equilibrada.
O PL 2016/2015 tem
por finalidade tipificar e estabelecer sanções para o crime de terrorismo no
Brasil.
A
proposta, no entanto, não apresenta definições precisas, considerando crime de
terrorismo atos contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por
extremismo político, intolerância religiosa ou racial, étnica, de gênero ou
xenófoba, além de qualquer ato que atente gravemente contra a estabilidade do
Estado Democrático.
Na
proposta original do executivo, havia, pelo menos, uma restrição de tipicidade
que garantia que a norma não incidiria sobre “conduta individual ou coletiva de
pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos,
de classe ou categoria profissional". Mas essa especificação acabou sendo
suprimida pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), relator do projeto no
Senado.
Isso
é preocupante, pois a ressalva preservaria um elemento fundamental ao regime
democrático, que é a liberdade de manifestação dos movimentos sociais e de
reivindicação de ampliação de direitos, os quais foram imprescindíveis para que
pudéssemos chegar ao regime democrático pleno que temos hoje.
Se
olharmos sob uma perspectiva história, veremos que a garantia de direitos é, na
maioria das vezes, um processo gradual.
A
Constituição francesa elaborada após a revolução instituiu o voto censitário,
ou seja, a escolha de representantes para o Parlamento só era garantida àqueles
que possuíssem um determinado patrimônio ou renda. Tratava-se literalmente de
uma democracia burguesa.
Na
história da democracia posterior a essa fase, graças à articulação de
movimentos sociais, esse direito foi universalizado. Os movimentos sindicais e
dos trabalhadores conseguiram que essa garantia fosse estendida para a
categoria, para os analfabetos e os menos favorecidos na escala social.
Os
movimentos de mulheres sufragistas asseguraram que elas também pudessem
participar da vida política. O movimento dos negros nos EUA e na Europa trouxe
a democracia ética para o ambiente político, permitindo que o negro pudesse
votar e ter acesso aos bens públicos.
Esses
processos de dilatação de direitos só foram possíveis pelo uso da livre
expressão e da possibilidade de manifestação política, os quais garantiram e
garantem a evolução da democracia, que é um sistema vivo, uma construção
permanente.
Retomando,
o projeto original da lei antiterror brasileira tinha a qualidade
importantíssima de preservação dos movimentos sociais, o que é fundamental para
evitar retrocessos em nossa vida democrática.
Se,
por um lado, há movimentos terroristas que praticam formas específicas de
criminalidade, que precisam ser combatidas, por outro, observa-se o conceito de
terrorismo sendo utilizado, muitas vezes, ao longo da história, como forma de
persecução política a pessoas e movimentos que lutaram pela ampliação de
direitos.
Isso
ocorre porque tipificar o crime de terrorismo e o terrorista não é algo tão
simples quanto se pode imaginar. Existem mais de 160 definições do que seja o
crime de terrorismo em todo o mundo. Essa plurissignificação do termo é uma das
razões que acaba possibilitando seu uso indevido.
Nelson
Mandela, líder e símbolo da luta contra o apartheid na África do Sul, é um
exemplo clássico disso. Hoje, festejado como herói da democracia e, em
especial, da democracia ética, foi, durante 25 anos, considerado agente
terrorista internacional.
Vale
lembrar que, no mundo contemporâneo, como apontado pelo filósofo Giorgio
Agamben, as leis antiterrorismo acabam funcionando como medidas de exceção no
interior de regimes democráticos, uma vez que possuem todas as características
de regimes de exceção.
Na
forma como são concebidas, implicam a suspensão de direitos de determinados
grupos pelo Estado, os quais são eleitos como inimigos e têm retirada sua
proteção político-jurídica inerente à condição humana, com função
política.
E
a adoção de medidas de exceção a partir de dispositivos legais indeterminados
não é algo novo; ao contrário, está na origem do próprio conceito moderno de
Estado de Exceção. Como se sabe, o conceito surgiu na Constituição Alemã de
Weimar, de 1919, a qual possibilitava a suspensão dos direitos e garantias em
situações excepcionais ou de emergência.
E
foi justamente a amplitude de significados contida nesses termos que permitiu a
Hitler fundar seu regime de exceção, tendo como justificativa o incêndio ocorrido
no Reichstag, três meses após ser eleito. Ao suspender a proteção de direitos,
ele não o fez negando vigência à Constituição, mas sim se valendo de um
dispositivo constitucional indeterminado.
As
leis atuais de combate ao terrorismo acabam repetindo esse mecanismo
hermenêutico, interpretativo. Assim, uma norma de tipificação penal pode acabar
sendo usada para finalidades absolutamente estranhas às que o legislador
imaginou ao criá-la, servindo de instrumento para instaurar esse mecanismo de
guerra entre Estado e cidadãos.
O
governo e o legislativo brasileiro, pressionados também pela força de
compromissos assumidos em tratados internacionais, obviamente imaginam que a
aprovação de uma lei antiterror lhes possibilitará investigar atos preparatórios
para crimes de terrorismo internacional que passem pelo nosso território.
Mas
é preciso ter cautela, pois, na forma como está hoje, trata-se de um projeto
que pode custar muito à nossa democracia, sendo utilizado futuramente para
perseguir politicamente grupos ou indivíduos que reivindiquem direitos
contrários aos interesses das autoridades e governantes do momento.
Além
disso, o combate ao terrorismo, baseado em tipificações penais imprecisas e
restritivas de direitos, é um mecanismo de utilidade, no mínimo, duvidosa.
A
resposta do governo norueguês após os atentados de julho de 2011, praticados
por um ativista de extrema-direita e que resultaram na morte de 76 pessoas, não
foi o recrudescimento das leis penais.
Sem
deixar de investigar e prevenir atos criminosos, o país adotou como principais
armas contra o terror a liberdade e a confiança, evitando que o medo se
instalasse e que, sob o pretexto de apanhar alguns culpados, seus cidadãos
sofressem restrições às suas liberdades individuais. É um belo exemplo e um
contraponto essencial não só para os nossos legisladores, mas para o mundo
todo.
Pedro
Estevam Serrano é advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP,
mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com pós-doutorado pela
Universidade de Lisboa
Publicado
originalmente no portal Carta Capital
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